terça-feira, 19 de julho de 2016

O lançamento de granadas no Polígono

No meu curso de oficiais milicianos diversas vezes os instruendos se deslocaram a um terreno nos arredores de Vendas Novas pertencente à Escola Prática de Artilharia a fim de fazerem exercícios de tiro e de lançamento de granadas.
No caso do meu pelotão o instrutor era um jovem tenente de quadro permanente que manejava as armas com grande desenvoltura.
Num determinado dia o meu pelotão marchou em fila dupla do quartel até ao Polígono, assim se chamava a referida carreira de tiro. Aí chegados o nosso instrutor informou-nos de que iríamos fazer um exercício despoletando e lançando granadas. Encaminhou-nos então para uma trincheira existente com algumas dezenas de metros de comprimento e com a profundidade de cerca de 1,60 metros. No extremo dessa trincheira havia um espaço subterrâneo onde nos reuniu e onde dissertou sobre as granadas que iam ser deflagradas.
Depois convidou-nos a ocupar a trincheira seguindo metade do pelotão à sua frente e a outra metade atrás dele. Eu fazia parte do último grupo. E a dada altura iniciou o lançamento das granadas com ele próprio a fazê-lo e todos os instruendos abrigados na trincheira  ao mesmo tempo que esclarecia o que ia acontecendo.
No decorrer da prova alertou-nos que a próxima granada a ser lançada era de grande potência e que não nos admirasse-mos com o estrondo que provocaria ao explodir.
- Vai ser um estrondo dos antigos !
Mas não foi. Nenhum barulho se ouviu, uma vez que a granada não explodiu.
Fiquei preocupado com a situação, pois a sua explosão poderia acontecer a qualquer momento, uma vez que a granada já estava despoletada. Poderia até acontecer quando saíssemos da trincheira, o que seria muito perigoso, pois a parte metálica das granadas com a sua deflagração estilhaça-se em inúmeros pequenos pedaços atingindo tudo que exista à sua volta.
Para os humanos essa situação é muito perigosa uma vez que com a força da explosão esses estilhaços penetram profundamente nos seus corpos.
Mas o tenente explicou que não havia problema. Que seguidamente iria fazer deflagrar uma outra granada e que o sopro da explosão desta, por simpatia, faria explodir a que não tinha rebentado.
Não ficando muito convencido de que tudo correria com a facilidade que o tenente tinha dito resolvi, por isso, caminhar lentamente, meio curvado, até ao referido retiro subterrâneo no fim da trincheira. Fi-lo contudo com alguma dificuldade porque a minha deslocação não era fácil uma vez que entre a posição onde me encontrava até ao referido retiro estavam inamovivéis alguns colegas meus, embora outros já se movimentassem nesse sentido, à minha frente.
O tenente fez o que prometeu. Lançou outra granada que provocou uma violenta explosão. Mas da granada anterior nada, no imediato só se ouviu silêncio. A sua explosão verificou-se alguns momentos depois dentro da trincheira onde permanecia o instrutor e parte dos instruendos.
Quando eu já estava no abrigo ouvi então uma enorme gritaria vinda dos que foram atingidos por essa última explosão que, mais tarde, concluí terem sido nove instruendos.
A última granada lançada para o exterior da trincheira ao explodir com o sopro do seu rebentamento fez com que aquela que não havia deflagrado rebolasse até à trincheira, acabando por rebentar aí, praticamente no meio do tenente e dos meus camaradas.
Gerou-se então uma grande turbulência. Os atingidos pelos estilhaços queixando-se com gritos alucinantes de dôr e alguns que haviam sido feridos na cabeça e na cara, com o correr do sangue pelos seus olhos, imaginavam, desmoralizados, que os seus ferimentos eram muito mais graves do que na realidade eram e pediam a presença das suas mães, julgando-se no fim dos seus dias.
Ajudei no que pude bem como todos que não foram atingidos, ficando com o meu fardamento todo ensanguentado quando procurei amparar e acalmar os meus colegas feridos.
O tenente ligou para o Quartel e solicitou três ambulâncias. Todos os nove feridos puderam então ter os primeiros cuidados médicos e quando as ambulâncias iam partir para o Hospital, nessa altura, o tenente mandou que um sargento conduzisse, em formatura, para o quartel os restantes soldados cadetes do meu pelotão. Foi, depois disso que ele (o tenente) retirando um braço todo ensanguentado que tinha ao peito por dentro de um blusão de couro, referiu que precisava também de tratamento por ser um dos atingidos.
Dos nove feridos quatro foram depois levados para Lisboa de helicóptero para o hospital militar. Os outros e o tenente puderam ser tratados em Vendas Novas.
Dos quatro evacuados para Lisboa só dois é que voltaram para a Escola Prática de Artilharia. Os outros dois sobreviveram ao acidente mas, devido às mazelas que sofreram, foram desobrigados do cumprimento do serviço militar obrigatório.
No fim destas histórias reais que contei, resolvi fechar este meu livro com o dramático exercício de despoletamento e lançamento de granadas no Polígono de Vendas Novas. Desta maneira quero lembrar aos meus leitores o que afirmei no introito deste livro: a vida humana é uma comédia mas não deixa de ter também períodos difíceis, dramáticos, acabando sempre numa tragédia.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

A passagem de ano de 1970 para 1971

A cidade de Bissau no tempo em que lá cumpri uma comissão obrigatória entre 1970 e 1972 regurgitava de movimento nas ruas, onde era claramente notada a população branca.
Dado o clima de guerra existente, todos os dias recordado pelas evacuações de feridos e mortos vindos do interior do território e por vezes porque era perfeitamente audível em Bissau o bombardeamento das artilharias que, com o rebentamento das suas granadas, provocavam o retinir dos vidros das janelas, as pessoas viviam com um sentimento de insegurança.
Sentimento que se tornou maior quando houve uma tentativa por parte das forças do PAIGC de alvejar com mísseis os depósitos da Sacor, em Bissau. Não acertaram no alvo, mas o sibilar dos mísseis foi por todos ouvido ao passarem pelos céus da cidade.
Pela insegurança e pelo isolamento em que se vivia, relativamente a familiares e amigos, os portugueses sentiam uma grande necessidade de convívio, de estabelecer laços humanos entre eles.
No meu caso pessoal frequentava com a minha família, nas noites de quarta-feira o batalhão de engenharia onde se realizava, semanalmente, um jantar convívio. Aos sábados, geralmente, deslocavamo-nos até à piscina do Clube de Oficiais e em outros dias da semana, por vezes, havia festas de aniversário ou simples recepções em casas de famílias das nossas relações.
Uma das casas que frequentávamos muito era a do engenheiro Lourenço Pinto, chefe dos Serviços de Obras Públicas da Guiné, casado com a Etelvina Moritz, ambos naturais da Torre de Moncorvo em Trás-os-Montes, muito amigos da minha mulher.
Em nossa casa organizava-mos somente algumas pequenas festas, sobretudo em ocasião de aniversários, dado que não tínhamos cozinheira sendo a nossa alimentação garantida pela Messe de Oficiais.
A casa do engenheiro Lourenço Pinto era frequentada praticamente por todas as pessoas com responsabilidades na vida administrativa da Guiné. Lá encontrávamos o Secretário-Geral (segunda figura do Governo do território ) e diversos chefes de serviço (o mais alto posto da hierarquia do funcionalismo público). Mas também lá encontrávamos pessoal do Serviço de Obras Públicas de várias categorias, incluindo a de capataz, bem como comerciantes e outros elementos da população civil.
Com a família do engenheiro Lourenço Pinto também passávamos as festas de Natal e de Ano Novo. O salão de festas da Associação Comercial de Bissau foi o palco da nossa passagem de ano de 1970 para 1971. Fomos convidados para essa passagem de ano por um comerciante de Bissau que fazia parte da direcção da referida associação.
A festa, conforme o referido comerciante teve a amabilidade de me explicar, seria abrilhantada toda a noite por um conjunto cabo verdiano conhecido mas havia um problema: não existia serviço de "buffet".
Os participantes teriam de levar de suas próprias casas algumas bebidas e alimentos que depois se exporiam e de onde cada qual se serviria.
Aceitei o amável convite e, com a minha mulher, começámos a pensar na nossa contribuição para a ceia de passagem de ano. Conversei sobre o assunto com o alferes Santos que comigo colaborava nos Serviços de Reordenamentos Populacionais. Devido à sua formação em agronomia, ele era o responsável também pela agro-pecuária do batalhão de engenharia.
Quando lhe falei no meu problema, despachado como era, disse-me logo:
- Não se preocupe Capitão. Eu resolvo-lhe isso.
Nem eu nem a minha mulher nos preocupámos mais com o caso. No dia 30 de Dezembro lembrei-lhe o que me tinha garantido. Respondeu-me que não estava esquecido. Que às oito horas da noite do dia seguinte mandaria entregar, da minha parte, na Associação Comercial dois patos assados com arroz. Não falhou. De resto era próprio da sua maneira de ser respeitar escrupulosamente o que se combinava com ele.
Nós levámos duas garrafas de vinho, uma garrafa de whisky e sobremesas.
Os patos do alferes Santos estavam com muito bom aspecto e óptimo paladar. Comeu-se toda a noite, bebeu-se, dançou-se. Eu sou um fraco dançarino, mas o salão de festas estava super lotado. Os pares mal se podiam mexer o que me favoreceu muito. Por outro lado o engenheiro Lourenço Pinto, enlaçado à sua mulher, sempre que passava por mim incentivava-me.
Foi uma linda festa, embora não me recorde de, alguma vez, me ter acontecido uma passagem de ano em que tivesse de contribuir com produção alimentar própria.
Alguns dias depois agradeci ao alferes Santos a sua colaboração e pretendi reembolsá-lo das despesas. Explicou-me, nessa altura, que por erro da sua escrita na relação das existências na agro-pecuária do batalhão de engenharia tinha dois patos a menos do que aqueles que na verdade existiam na capoeira.
- Com a morte daqueles dois patos foi a maneira de acertar as minhas contas.
Era um bom amigo o alferes Santos. Sendo natural do Cartaxo, no Ribatejo, dançava muito bem o fandango.

Nota: Esta história faz parte do livro "Memórias da Guiné" do mesmo autor, de onde foi transcrita.

domingo, 17 de julho de 2016

As verbenas de Bragança

Iniciei a minha vida profissional, como já referi anteriormente, em Bragança.
A viagem do Porto para esta cidade transmontana foi-me muito agradável. Fi-la de comboio, uma parte pela linha do Douro com vistas panorâmicas de rara beleza sobre o rio do mesmo nome e a outra parte pela linha do Tua também muito paisagística.
Cheguei a Bragança ao cair da noite de um dia no final do mês de Abril de 1957.
A cidade, há muitos anos, era relativamente pequena. Acabava praticamente logo depois do edifício dos correios que ainda hoje existe no mesmo local.
Bragança era constituída pelo seu centro histórico desenvolvendo-se ao seu redor uma pequena mancha de construções modernas. Cheguei como disse no final do mês de Abril de 1957. Já não havia frio. As temperaturas da região já eram nessa altura relativamente moderadas.
O que me impressionou mais na cidade foi a população feminina. Era notoriamente constituída por um número superior ao dos homens.
Sempre que havia uma festa, um ajuntamento qualquer que fosse, era notória a preponderância das mulheres. A razão principal disso acontecer seria por Bragança não ter, nesse tempo, grandes oportunidades de emprego para os homens., pelo que eles, procurando trabalho, abandonavam na juventude a sua cidade.
Por outro lado, como Bragança não disponha de qualquer escola superior os lugares de chefia e de outras posições intermédias das repartições do Estado eram preenchidos normalmente por indivíduos com formação adquirida nas grandes cidades como Lisboa, Porto ou Coimbra.
Quando fui colocado em Bragança, vindo do Porto, eu tinha apenas vinte anos de idade. E nos primeiros dias levei na cidade transmontana uma vida muito recatada, ocupando o meu tempo a trabalhar pois as minhas relações pessoais eram muito poucas resumindo-se praticamente aos meus companheiros de mesa da pensão onde me instalei.
Em Maio, contudo, tive conhecimento que numa Alameda, perto do Liceu, tinham sido iniciadas umas verbenas, festas populares com música gravada.
Resolvi por isso numa certa noite ir até lá.
Andava eu, sozinho, gozando o novo acontecimento da cidade quando ouço no altifalante da festa o anúncio de um disco que me era dedicado nestes termos:
- Ao senhor engenheiro Fernando de Pinho Valente um grupo de admiradores dedica-lhe o seguinte disco:
E logo de seguida se fez ouvir uma canção espanhola muito em voga: o Beija-me mucho cantado por uma jovem intérprete.
Fiquei, dada a minha natural timidez pouco  vontade com a situação criada. Ainda assim permaneci na verbena até que a música deixasse de se ouvir.
Mas, depois, calmamente abandonei o local.
Mais tarde descobri quem foram as autoras da ideia.
Na Direcção de Urbanização de Bragança onde fui colocado exercia também funções um desenhador, já na meia idade, que com o seu sétimo ano dos liceus ( actual décimo primeiro ano) sendo bom em matemática era explicador dessa disciplina. Dos seus explicandos fazia parte nessa altura um grupo de raparigas que, com os seus 16-18 anos de idade se preparavam para o exame do quinto ano dos liceus ( nono ano de hoje) no intuito de entrarem na Escola do Magistério Primário.
E foram algumas dessas raparigas que sabendo pelo referido desenhador o meu nome resolveram dedicar-me o referido disco.
A Escola do Magistério Primário era a única oportunidade na sua cidade que os estudantes do Liceu de Bragança tinham para continuarem os seus estudos.
Era uma escola com muito frequência, na sua grande maioria de raparigas.
Um colega meu chamava-lhe o viveiro das trutas. Muitas vezes me convidou a dar um passeio até à Escola Normal ( também assim chamada ) para ver as raparigas à saída do viveiro, que eram na verdade na sua grande maioria mulheres bonitas e fisicamente jeitosas.

sábado, 16 de julho de 2016

A prova de orientação

A quando do cumprimento obrigatório do meu serviço militar em 1958 tive de frequentar, como já referi anteriormente, o curso de oficiais na Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas, no Alto Alentejo. Desse curso faziam parte diversas disciplinas e exercícios de campo.
Um desses exercícios foi o de orientação. Acampados num terreno arborizado nos arrabaldes de Vendas Novas pelas 10 horas da noite de certo dia tocou a reunir e os diversos pelotões formaram-se prontamente.
Depois de verificado que todos os soldados cadetes estavam presentes o Comandante da Companhia informou-nos que naquela noite se iria realizar um exercício de orientação.
Foram-nos dados um mapa da região, uma bússola e um foco. Cada pelotão foi encaminhado para o seu unimog (veículo militar de transporte) onde os seus elementos foram obrigados a entrar.  Depois os unimogs arrancaram e cada um seguiu, pela noite fora um caminho diferente.
O que levava o meu pelotão, depois de percorrer alguns quilómetros por estrada acabou por entrar num caminho de terra batida e de estacionar num descampado.
Aí fomos descarregados e foi-nos dito que, agora, o regresso ao acampamento era por nossa conta, isto é que teríamos de regressar sem nenhuma ajuda ao local de onde partíramos a pé naquela noite fria de Inverno.
A seguir os instrutores meteram-se no veículo e foram-se embora. Ficamos sós com um mapa, uma bússola e um foco cada um.
Do meu grupo, como acontece normalmente em quase todos os grupos, logo houve alguns dos meus companheiros que afirmaram saber onde nos encontrávamos e qual a direcção que havia de ser seguida para chegarmos a Vendas Novas. Um desses líderes, tendo nascido em Goa, era descendente de indianos. Julgo que pertencia até a uma casta elevada e era tão inteligente como vaidoso.
Ao longo da sua vida foi professor universitário, ocupou cargos de responsabilidade no Estado e nas Misericórdias.
Logo conseguiu juntar à sua volta um numeroso grupo que se prontificou a segui-lo. Eu, na periferia do ajuntamento, tinha pouca vontade de o acompanhar, não porque duvidasse da rota traçada por ele mas porque pensava que caminhar a corta-mato em direcção a Vendas Novas não seria boa ideia, naquela altura, porque tinha chuvido muito nos dias anteriores, a terra estava enlameada e os ribeiros e riachos corriam cheios, impossibilitando a sua passagem a vau.
Enquanto cogitava sobre a situação um colega de origem alentejana, um pouco mais alto do que eu mas francamente mais gordo perguntou-me:
- Tu vais com eles ?
Respondi-lhe:
- Eu, não.
- Então qual é a tua ideia ?
- Eu vou seguir os rodados do unimog até à estrada e depois caminho por ela até ao acampamento. Desse modo não me perdirei e acabarei por chegar são e seco. Poderei chegar tarde mas chegarei.
- Tens um companheiro de viagem. Eu vou contigo.
Todos os outros foram partindo a corta-mato e nós os dois ficámos para trás. Depois seguimos os rodados do unimog.
Ao fim de uma boa caminhada acabámos por chegar à estrada nacional. Pouco depois de lá chegarmos vislumbramos uma placa de sinalização que dizia: Vendas Novas 22 Km.
Sem tropeções, em terreno seguro, sem lama nem lençóis de água caminhámos os dois a noite toda.
Falámos da nossa vida, do que pretendíamos fazer no futuro. Falámos da nossa família, das nossas namoradas, das nossas dúvidas, das nossas esperanças caminhando durante toda a noite.
Quando nos sentíamos cansados, principalmente por causa do meu companheiro que era pesadote, sentávamo-nos nos muros que delimitavam a estrada dos terrenos particulares quando os havia e nos marcos hectométricos implantados nas bermas da via rodoviária. E chegámos secos e sem lama ao Bivaque. Chegámos já com dia, muito cedo, cerca das seis horas e meia da manhã.
Encaminhámo-nos logo para cozinha para nos aquecermos e para bebermos qualquer líquido quente e comer, porque a viagem tinha sido longa e desgastante. Depois procurámos saber dos outros elementos do nosso pelotão.
Não tinham chegado ainda. Acabaram por chegar pelas sete horas da manhã, todos enlameados e molhados. A rota que tinham traçado estaria correcta. O problema é que encontram diversas linhas de água que não puderam atravessar nessa rota, procurando fazê-lo mais a montante no que perderam imenso tempo. O chão estava por sua vez toda empapado em água tornando a sua passada difícil e demorada.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

A noite de S. Martinho

No dia de S. Martinho de 1958 estava eu em Vendas Novas aquartelado na Escola Prática de Artilharia.
A minha camarata era constituída por oito beliches, quatro de cada lado com as cabeceiras encostadas às paredes laterais. Entre os beliches havia um espaço (corredor) que ia da porta de entrada até à única janela existente na parede posterior.
O meu beliche era ocupado por mim na parte inferior e na parte superior dormia uma camarada meu que, embora da minha idade, isto é com vinte e dois anos já tinha uma grande falta de cabelo.
Por brincadeira antes de adormecermos fazia-lhe uma festa na careca, atitude que o enervava mas que eu repetia sempre.
A instrução militar era muito cansativa. Passávamos o dia a mudar de fardamento, ora para a ginástica, ora para a luta corpo a corpo ora para os "crosses" pela planície alentejana, ora para a ordem unida... Era um corrupio. Entre os intervalos das diversas instruções mal tínhamos tempo para despir o fardamento e vestir o que se imponha na hora seguinte.
Também o esforço físico era permanente o que me trazia exausto.
Na noite do dia de S. Martinho de 1958 eu, que nunca tive grande apreço pelas bebidas alcoólicas, resolvi descansar pelo que não solicitei licença de recolher. Dos dezasseis cadetes da minha camarata fui o único que não pedi essa licença.
Deitei-me cedo, num enorme silêncio, enquanto todos os outros resolveram ir beber uns copos nessa noite.
Cerca da meia-noite desse dia, quando regressaram fizeram algum barulho mas eu dormindo profundamente não dei por nada.
Animados, como vinham, resolveram pintar-me um grande bigode e um pêra com a tinta de engraixar as botas. Com mercúrio-cromo também me pintaram de vermelho a ponta do nariz e as maçãs do rosto sem ter dado sinal de vida.
Continuei a dormir pesadamente. Disseram-me, no dia seguinte, que a única reacção que tive foi a de fungar pelo nariz com algum ruído devido possivelmente ao cheiro da tinta e do mercúrio-cromo.
Quando tocou a alvorada levantei-me lesto como sempre pois o tempo para a formatura do pequeno almoço não demoraria muito e antes teria de tomar um chuveiro diário de água gelada, de me barbear, pentear e escovar os dentes e, claro, de me fardar convenientemente.
Só quando cheguei ao balneário, olhando-me no espelho é que tomei consciência da figura em que estava. Fartei-me do vocifrar para gáudio dos meus colegas. E tratei de limpar as pinturas que me haviam feito como pude.
Os meus colegas esses riam com o meu enervamento e desespero na tentativa de remover as pinturas de que tinha sido objecto.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Cantiga da rua

A história que vos vou contar passou-se numa terra muito pequena, numa aldeia perdida na Beira Interior que se chama S. Pedro do Rio Seco.
Outrora havia por lá um riacho que hoje já não existe. Secou.
S. Pedro do Rio Seco é uma terra de pastores e agricultores.
Entre os rapazinhos que eu conheci, quando por lá passei, havia dois que são os principais protagonistas desta história: o Carlinhos, filho de um lavrador abastado e o Zé Pequeno, filho de um ferreiro.
O Zé Pequeno era um rapazinho triste e enfezado que andava sempre agarrado a umas muletas, porque não tinha força nas pernas.
O Carlinhos, esse era muito saudável de rosto sempre afogueado, de tronco encorpado e nádegas avolumadas. Tinha uma cara gaiata que em certas ocasiões me fazia estalar o riso.
Muitas vezes brincávamos no meu quintal onde havia uma coelheira com muitos coelhos e também uma cabrinha que, servia em certas ocasiões, de cavalo de guerra.
Outras vezes brincávamos em casa do Carlinhos que era grande e recheada de tudo. Quase sempre, quando lá íamos, éramos convidados para comer uma lauta merenda onde entre outras coisas entravam figos, nozes, pão com marmelada...
Em outras ocasiões juntávamo-nos na casa do Zé Pequeno onde com curiosidade, seguíamos os trabalhos em ferro que o seu pai executava.
Nós esforcávamo-nos sempre por alegrar o Zé Pequeno na frente do seu pai, que era um homem que trabalhava horas a fio à bigorna e a malhar e cortar ferro até ficar exausto de cansaço.
Falava pouco o Tio Zé Ferreiro e nunca o vi sorrir. Mas também nunca ninguém o ouviu lamentar-se da sua triste sorte.
Certo dia, próximo do Natal, ele nos confidenciou que o seu pensamento, a sua ambição era juntar o dinheiro necessário para que o seu filho entrevado pudesse libertar-se das muletas fazendo uma operação à coluna vertebral.
Pelas contas dele ainda faltavam dois anos de duro trabalho para atingir a quantia em dinheiro necessária para poder pagar as despesas da operação do Zé. Mas havia de o conseguir e então o seu filho deitaria corpo, far-se-ia forte e poderia ajudá-lo na ferraria.
Eu fui para casa a pensar nas palavras do Tio Zé Ferreiro e contei o que ouvira dele aos meus pais. Eles logo me deram uma nota de mil escudos (cinco euros) para ajudar nas despesas da operação.
Quis correr para casa do Zé naquela noite para lhe entregar os mil escudos, mas os meus pais não mo consentiram e, por isso, tive de me deitar.
No dia seguinte, de manhã cedo, fui acordado por uma barulheira enorme. Era um acordeão que se ouvia. Lembrei-me logo do Carlinhos que tinha um acordeão e da sua música preferida: A Cantiga da Rua.
Lá estava a Cantiga da rua. Comecei a perceber e a distinguir a música, só não entendia por que seria que o Carlinhos andava tão de manhãzinha acordando com a sua cantiga toda a gente daquela pacata aldeia, meio perdida na Beira Interior.
- Eh Carlos ! Porquê tão cedo ?!
O Carlinhos vinha mais afogueado do que o costume e os seus olhinhos espertos brilhavam muito.
Ele disse-me qualquer coisa à toa. Falou em Zé Pequeno... operação... dinheiro.
Também não precisava de dizer mais nada porque eu percebi logo tudo e atirei-lhe com a minha nota de mil escudos.
O Carlinhos continuou a sua marcha, tocando no acordeão a sua música preferida:
Cantiga da rua
De todas diferente
Não é minha, não é tua
É de toda a gente.
E foi percorrendo todas as ruas de S. Pedro do Rio Seco e parando em todas as casas.
Andava penosamente porque o acordeão era enorme tendo em vista a sua pequena estatura. Parecia uma pintura de um autor célebre, com o seu cabelo negro em desalinho, a sua face afogueada e o olhar esperto.
A todos que encontrava dizia sempre à toa algumas palavras das quais sobressaiam: Zé Pequeno... operação... dinheiro.
E tocando o seu acordeão aquele rapaz que eu conheci, quando passei por S. Pedro do Rio Seco, conseguiu juntar o dinheiro suficiente para poupar ao Tio Zé Ferreiro muitos dias de trabalho insano e de lhe trazer ao rosto um breve sorriso contido naquele distante Natal.

Nota: Esta história aconteceu na vida real, mas num contexto diferente daquele que descrevi e com outra canção e outros intervenientes.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Os trabalhos de topografia

Na minha vida profissional procedi a diversos levantamentos topográficos quer para a execução de projectos de vias rodoviárias e de abastecimentos de água a populações quer para a implantação de edifícios.
Utilizava nesses trabalhos um taqueómetro, aparelho destinado à obtenção e registo dos elementos necessários ao cálculo de distâncias e de desníveis e ao desenho dos levantamentos topográficos (plantas, perfis longitudinais e transversais).
O referido aparelho é munido de uma luneta que permite ver à distância como um binóculo.
No decorrer desses meus trabalhos de campo algumas vezes me deparei com situações curiosas.
Certa vez em Bissau, na Guiné, prestando serviço para a Empresa Tecnil, tive de proceder ao levantamento topográfico de uma apreciável área de terreno, tendo em vista a implantação no local das novas instalações da referida empresa.
No fim da tarde, com o trabalho terminado, tive a ideia de fazer algumas miradas sobre os arredores do lugar algo ermo e pouco frequentado onde me encontrava. E aconteceu-me a certa altura deparar com um longínquo grupo de jovens mulheres negras e mulatas completamente nuas tomando banho num riacho. Fiquei surpreendido com tal aparição e por alguns momentos não deixei de gozar o espectáculo que elas proporcionavam.
Pude perceber que se tratava de um grupo de lavadeiras de roupa que, depois de executarem o seu trabalho, se banhavam no riacho, todas nuas, para se refrescarem possivelmente pelos seus corpos estarem transpirados devido ao trabalho que haviam efectuado ao calor inclemente da Guiné.
De outra vez estava eu a executar o projecto de uma estrada municipal entre Lamego e Resende, na região do Douro, acompanhado de um topógrafo quando tive outra divertida surpresa.
Depois de ter implantado no terreno diversas bandeirolas definindo a directriz de parte da referida estrada regressei à estação onde operava o referido topógrafo.
Encontrei-o sozinho a rir-se, soltando sonoras gargalhadas. Pensando que o meu colaborador tinha "pirado" perguntei-lhe o que se passava com ele.
- Venha, venha ver ! Foi a sua reposta.
Aproximei-me do taqueómetro, olhei pela luneta e o que vejo: uma jovem rapariga, lá longe com as mamas de fora do corpete, quando tentava atravessar uma corrente de água. A travessia dessa corrente fazia-se caminhando por uma espécie de barragem constituída por calhaus rolados.
A rapariga desequilibrava-se ao caminhar por cima dos calhaus e como era dotada de seios volumosos os mesmo com a ginástica que tinha de fazer para se aguentar de pé na passagem da levada, libertavam-se do "soutien" e saiam cá para fora. Por mais que ela tentasse acomodá-los no interior da roupa nada conseguia pois, desequilibrando-se, eles voltavam a aparecer à luz do dia.
Também me ri com a situação. Depois passei o taqueómetro ao meu companheiro que continuou a seguir a rapariga por alguns minutos e a rir-se como um desalmado.

terça-feira, 12 de julho de 2016

A Boneca

Ao relembrar as passagens que fiz por diversas terras detenho-me muitas vezes em certos lugares onde estive recordando os momentos agradáveis que lá vivi.
E uma das paragens em que mais de detenho é, sem qualquer dúvida, Valença do Minho.
Dada a vida um pouco errante dos meus pais percorri diversas zonas do país tendo passado alguns anos em Valença do Minho que considero a minha terra de eleição. Lá vivi dos sete aos doze anos. Lá tive os meus primeiros amigos, as minhas primeiras liberdades e inquietações, os meus primeiros sucessos e desgostos e a minha primeira namoradita.
Foi lá, em Valença do Minho, que iniciei a formação da minha própria personalidade e onde concebi os meus primeiros sonhos.
A cidade é uma maravilha, com a sua parte antiga situada numa pequena elevação abraçada por uma muralha fortificada e a parte mais moderna desenvolvendo-se ao redor dessa muralha.
A ladear Valença à o Rio Minho que separa Portugal de Espanha, rio de uma grande beleza paisagística. Do outro lado do rio situa-se Tuy, uma cidade espanhola sempre presente para quem vive em Valença, pois localizando-se numa zona altaneira são sempre visíveis do lado português alguns dos seus edifícios.
Era de Tuy a freira que me ensinou a catequese para eu poder fazer a comunhão.
Vinha todas as tardes a pé da cidade espanhola, atravessando a velha ponte metálica sobre o Rio Minho, subindo um escadório logo a seguir à alfândega do lado português, percorrendo um túnel (a gambiarra ) e entrando na parte velha de Valença do Minho onde se situava (e situa) a igreja paroquial.
Eu soube pelas minhas duas irmãs, mais novas, que se andavam a preparar para fazer a comunhão. Brioso como sempre fui não me conformei por ver as minhas irmãs passarem-me à frente neste capítulo. Por isso, numa certa tarde, resolvi irromper pela igreja a dentro na procura de alguém que me orientasse no sentido de também poder fazer a comunhão no mesmo dia que elas.
Quem me interpelou foi a referida freira espanhola perguntando-me o que procurava. Depois de lhe dizer o que pretendia acolheu-me amorosamente, tendo-me feito uma recepção calorosa e integrou-me no grupo que estava catequisando.
Foi-me avisando de que o grupo já estava sendo preparado a algum tempo e que por isso eu teria de fazer algum esforço para puder recuperar o atraso que tinha em relação aos seus elementos.
Logo assegurei à freira que não havia problema a esse respeito pois procuraria aprender depressa a parte do catecismo que já havia sido dada. E assim foi. Fiz a comunhão ao mesmo tempo que as minhas irmãs. E ganhei uma grande amizade com a freira que, mesmo depois de deixar de ser minha catequista, me trazia muitas vezes pequenas lembranças de Tuy como caramelos e chocolates.
E a minha aplicação foi tal no respeitante à religião que cheguei mesmo a ajudar o padre na missa dominical.
Naturalmente que concorreu para isso também a influência das freiras do colégio que frequentei. O colégio era frequentado por rapazes e raparigas, mas uns e outras assistiam às suas lições em alas diferentes do grande edifício que tinha entradas e saídas separadas.
Durante as aulas nunca via-mos as raparigas nem elas viam os rapazes. Somente podíamos contactar as alunas externas cá fora, antes da entrada do colégio ou à sua saída. Às alunas internas nunca lhe púnhamos os olhos em cima se não quando o ano escolar terminava. Nessa altura as freiras juntavam-nos para preparar-mos uma grande récita de final do ano de que fazia parte uma peça de teatro, algumas exibições musicais de piano, de acordeão e de guitarra interpretadas por alunos do colégio e no encerramento exibia-se um conjunto coral formado por estudantes de ambos os sexos.
Foi numa dessas festas que eu fui acometido pela minha primeira paixão. E logo pela figura feminina central da peça de teatro em que ela representou uma boneca.
Era a rapariguinha mais bonita de Valença. Foi ela a minha primeira namoradita. O seu verdadeiro nome era Fernanda, mas depois da peça de teatro toda a gente passou a chamar-lhe Boneca.
E essa minha paixão perdorou por algum tempo.
Mais tarde com os meus catorze anos ainda lhe escrevi os seguintes versos:

             Boneca

Se eu procurar, Boneca,
Por Hancheu e por Rangum
- Correr mesmo Seca e Meca -
Não hei-de encontrar boneca
Mais bonita do que tu.

Porque boneca mais linda
Não há, de certo, na China
- Em Xangai ou em Pequim - 
Mesmo feita de caulim
Da porcelana mais fina

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Monsieur Pinô

Ainda estava ao serviço da extinta Junta Autónoma de Estradas como Engenheiro Técnico quando, sem me ter candidatado a coisa nenhuma, fui designado para usufruir de uma bolsa da OCDE e fiz um estágio em França sobre vias rodoviárias.
Durante uma semana inteirei-me em Paris da organização da Direction des Routes (órgão estatal responsável pelas estradas de França). Depois passei algum tempo por Bordéus e acabei a minha missão em Toulouse por os directores do meu estágio considerarem haver alguma semelhança entre esta região de França e a região de Viseu onde vivia e ainda vivo.
Nesse estágio tive muitas surpresas. Logo no início verifiquei que os franceses colocavam as pessoas e as suas qualidades acima dos seus títulos académicos. Tratavam-se todos por monsieur fulano ou sicrano, ignorando os títulos profissionais que possuíam. Fui até surpreendido quando os coordenadores do estágio procuraram saber a minha opinião sobre o programa do mesmo solicitando que o "Messié" Pinô discorresse sobre o assunto. Fiquei à espera que o nomeado Pinô dissertasse sobre o programa, mas como ninguém respondia ao chamamento e os olhos dos meus interlocutores se concentravam em mim acabei por perceber que o Pinô era eu. O meu nome é Fernando de Pinho Valente e os franceses resolveram tratar-me pelo segundo nome: Pinho. E como o "h" não tem leitura (som) na sua língua e o "o" se lê ô acabei por ser designado por Pinô.
Todos os engenheiros franceses, alguns muito qualificados e capazes, eram tratados pelo nome de família. E nos seus trabalhos, relatórios e projectos sempre assinavam o seu nome em primeiro lugar e por debaixo indicavam as escola onde se haviam formado.
Conversando com "Messié" Lafargue, um ilustre engenheiro de pontes e pavimentos, que conhecia Portugal, referiu-me que se tinha apercebido que no nosso país havia uma grande atracção pelos cursos universitários, por esses cursos darem um estatuto especial a quem os obtinha e que havia um défice muito grande de profissionais em vários ramos.
E sobre este assunto contou-me uma história. Disse-me que conhecia uma família francesa com dois filhos: um que sempre foi muito bom estudante e o outro com pouca apetência pelos estudos. O primeiro dos irmãos deu imensa alegria aos seus progenitores pois sempre obteve altas classificações, licenciado-se, doutorando-se e, na altura, era professor universitário. Do mau estudante durante alguns anos os pais só tiveram desgostos e tristezas.
Mas este acabou por se colocar como canalizador assalariado. Depois montou uma empresa de canalizações, em que tem a seu cargo diversos profissionais dessa especialidade. Ganha muito bem. Os seus proventos são superiores ao do seu irmão professor universitário. É ele quem paga as férias aos seus pais. E o irmão muitas vezes também é convidado. Quando os pais adoecem e precisam de cuidados médicos é ele também que paga as despesas de saúde que eles fazem.
O dinheiro não é tudo na vida mas ajuda muito para se poder viver com alguma qualidade. E o filho da referida família francesa, sem vocação para estudar, soube no entanto fazer o seu próprio percurso de vida com dignidade e materialmente bem recompensado.

domingo, 10 de julho de 2016

A minha casa em Bissau

Em Abril de 1970 fui mobilizado para a Guiné, onde decorria uma sangrenta guerra colonial, sendo colocado no Batalhão de Engenharia 447 em Bissau.
Pouco tempo depois de ter chegado à referida colónia, consegui alugar uma pequena moradia na Avenida Arnaldo Schultz, muito próxima do quartel da polícia.
Era uma pequena vivenda mobilada e equipada com uma sala de estar, outra de jantar, dois quartos, cozinha e um quarto de banho. Mas tinha à sua volta um pequeno jardim no qual havia duas bananeiras, uma papaieira e uma belíssima acácia rubra.
Essa moradia permitiu-me alojar a minha também pequena família, composta por mim próprio, pela Lena (minha mulher) e o Fernando Manuel meu único filho, na altura com nove anos de idade que chegariam a Bissau a 24 de Junho de 1970, depois de cumprido o ano escolar.
Dada a minha posição na hierarquia militar tive direito a um impedido. Foi-me atribuído para executar essas funções um soldado negro, que anteriormente havia sido "terrorista", de nome Moba de religião muçulmana. Tinha já três mulheres quando entrou ao meu serviço e vários filhos. Andava sempre com dificuldades financeiras. Muitos dias antes do pagamento do pré pedia-me adiantamentos quase todos os meses.
Dizia-me que não tinha dinheiro para comprar a "vianda" para os meninos. E eu adiantava-lhe o pré. A sua religião proibia-o de beber vinho. Mas para ele vinho somente era o tinto. Dessa forma iludia as suas próprias convicções religiosas, pois dizia-me que o vinho branco era água de Lisboa e como tal não lhe estava proibido bebê-la.
Quando a sêde lhe apertava pedia-me:
- Capitão, dá-me um copo de água de Lisboa. E eu, em regra satisfazia-lhe o pedido.
Um dia pediu-me férias.
- Férias nesta altura, Moba ?
- Sim, Capitão. Preciso de alguns dias de férias para casar.
- Outra vez ?! - admirei-me eu. Já tens três mulheres e não sei quantos filhos e queres outra mulher ?
- Preciso, Capitão. Vou casar com uma "bajuda"(1). Quando eu e as minhas outras mulheres envelhecermos ela tratará de nós.
Perante esta explicação não pude deixar de dar férias ao meu impedido Moba.
Também tivemos ao nosso serviço uma lavadeira negra de nome Inácia. Durante o tempo que nos serviu o marido dela adoeceu gravemente e acabou por morrer.
Ficámos tristes com o infausto acontecimento uma vez que tinha-mos muita estima pela Inácia, que era muito boa pessoa.
Sempre que me irritava com alguma traquinice do meu filho e lhe ralhava ela punha-se imediatamente à minha frente e rogava-me:
- Capitão, não batas ao menino. Capitão, por favor.
Por isso quisemos saber da futura situação da Inácia e do seu pequeno filho. Ela informou-nos, então, que tudo estava assegurado. Passaria a pertencer a um seu cunhado e o "tiozinho" passaria a ter a responsabilidade de criar o miúdo.
Era uma criatura paciente, humilde e meiga a Inácia. Gostava muito do meu filho. Dizia-me, a respeito dele, muitas vezes:
- Menino tem esperto na cabeça.
Tivemos também uma "bajuda" para a limpeza. Era uma rapariga muito nova que, findo o trabalho, se despia completamente nas traseiras da nossa casa e se lavava com a mangueira do jardim.
Encontrei o meu filho algumas vezes, por detrás das persianas, gozando o espectáculo que a "bajuda" oferecia sem o mínimo pudor.
Também tivemos um pequeno cão, o Perna Longa, e um periquito. Uns tempos antes de regressar-mos a Portugal demos o cão. O Moba tratou de o levar para o novo dono que habitava longe de nós. O animal procurou e conseguiu voltar à nossa casa, orientado-se não sei como por entre aquele emaranhado de bairros de palhotas que circundavam a cidade.
Só depois de ser preso pelo novo dono é que deixou de nos aparecer.
Quanto ao periquito ofereci-o ao Major (é hoje General) Carlos Azeredo. Ele tinha tido um periquito que morreu. O Major falou-me do seu passamento com alguma tristeza. Perto de regressarmos, para aliviar a tristeza do major, ofereci-lhe o periquito.

1 Bajudas: era o nome dado às jovens menstruadas.

Nota: Esta história faz parte do livro "Memórias da Guiné" do mesmo autor, de onde foi transcrita.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

A procissão da Nossa Senhora da Ajuda

A minha vida militar na sua totalidade durou sessenta meses, isto é, cinco anos de serviço obrigatório. Este período de tempo foi dividido em duas partes. A primeira, com a duração de vinte meses, iniciei--a como cadete e acabei-a como alferes, entre os meus vinte e um e vinte e dois anos de idade. E a segunda, já com as guerras coloniais em curso, e com trinta e três anos de idade fui de novo chamado às lides militares, regressando somente à vida civil passados quarenta meses. Vivi por isso diversas situações em Portugal e na Guiné, onde fiz uma comissão durante dois anos. Deste último território relato alguns acontecimentos que por lá vivi no meu livro "Memórias da Guiné".
Hoje gostaria de recordar factos ocorridos na minha primeira passagem pela vida militar, quando prestei serviço como aspirante a oficial miliciano.
Nessa qualidade tive de executar algumas missões que me surpreenderam e que na vida fora dos quartéis eram inimagináveis.
No dia a dia do pessoal aquartelado só se pode (ou deve) sair para o exterior depois do toque da ordem. Esse toque, no final das tardes, quer dizer que a ordem de serviço já está pronta e pode ser consultada. Nela é indicado o pessoal nomeado para os serviços do dia seguinte. Convém por isso aos militares de qualquer unidade tomar conhecimento dessas nomeações e assegurarem-se se deles não fazem parte.
Na leitura dessa ordem aconteceu-me por diversas vezes ser surpreendido ao deparar com a minha indigitação para várias acções que jamais me passariam pela ideia.
Há uma lista de oficiais, outra de sargentos e outra de praças. E quando há necessidade de indicar alguém para a realização de determinado acto, são consultadas as listas e é indicado na ordem quem é designado para o efeito.
A mim, quando prestei serviço no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 3 em Paramos-Espinho aconteceram-me algumas nomeações de serviços muito imprevistos que eu, com toda a paciência, procurei cumprir o melhor que pude.
Lembro-me que numa determinada altura a fundação da Nato fazia dez anos e o meu nome saiu na ordem indicado para proferir uma palestra para toda a Unidade Militar sobre a referida organização, que, com os meus verdes vinte e um anos, mal sabia o que era.
A cerimónia previa-se ser grandiosa pois as duas baterias com cerca de trezentos homens estariam formadas na parada devidamente comandadas pelos respectivos capitães, coadjuvados por alferes e sargentos. Os oficiais que não faziam parte da formatura, incluindo o Comandante da Unidade (com a patente de Coronel) e o Segundo Comandante (Tenente-coronel) estariam num grupo à parte bem como estariam noutro grupo os sargentos não incluídos na formatura geral.
Tive de rapidamente me deslocar ao Porto e procurar na Biblioteca Municipal os jornais diários de dez anos antes para colher alguns elementos a fim de poder preparar a referida palestra.
Nunca tinha falado em público, mas com o discurso escrito na mão não me foi difícil fazer a sua leitura numa voz forte e pausada.
De outra vez saiu na ordem que eu representaria o Comandante da Unidade (Gaca 3) na procissão da Senhora da Ajuda de Espinho.
O Comandante, que foi convidado para essa cerimónia, não poderia estar presente e delegou num oficial. Foi-se à lista dos disponíveis e encontrando-me eu à cabeça dos indigitáveis, fui indicado para essa missão. Verdadeiramente preocupado em saber o que teria de fazer, informei-me que teria de me apresentar com a farda número um, com uma faixa vermelha à cinta, incorporando a procissão imediatamente atrás do pálio. A farda número um eu possuí-a. Mas a tal faixa vermelha é que não. Nem eu nem nenhum dos meus colegas. Até que alguém alvitrou que o alferes Magalhães do quadro permanente (oficial de carreira) talvez me pudesse valer.
Procurei o Magalhães e ele prontamente se ofereceu para me engalanar com a sua faixa e de me dar alguns conselhos.
E assim percorri Espinho atrás do pálio com a farda de gala e a faixa vermelha. Foram mais de duas horas que foi quanto demorou a procissão, em que incluo o tempo do sermão que o padre fez junto ao mar na marginal.
Comigo, atrás do pálio, ia o Presidente da Câmara, o Reitor do Liceu, o Juíz, o representante do Governo Civil, um deputado da Assembleia da República... ao todo eram oito individualidades, nas quais me incluo, quatro à frente e quatro atrás. Eu seguia no grupo de trás.
Quando o Presidente da Câmara de Espinho, que ia à frente, se virou para trás com ar interrogativo, como quem diz:
- Quem és tu ? O que estás aqui a fazer ?
Eu fiz-lhe a continência e disse-lhe:
- Estou em representação do senhor Comandante do Grupo de Artilharia.
Ele imediatamente me puxou para o grupo da frente para o lado dele.
Ia todo impante com a minha farda de gala e a faixa vermelha à cinta.
Os meus colegas, assistindo à passagem da procissão, diziam bocas mas eu não me deixei perturbar.
Com esta minha missão algo ganhei. Nos dias seguintes verifiquei quanto subi no conceito das raparigas de Espinho, que mostrando desejos de me conhecer, gabavam a minha prestação na procissão da Senhora da Ajuda.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

O senhor director

No meu tempo como engenheiro técnico da Direcção de Estradas de Viseu, este organismo do estado, que aliás existia em todas as capitais de distrito, era composto por mais de duzentas pessoas nas quais se incluíam cantoneiros, chefes de conservação de estradas, capatazes, fiscais, motoristas, operadores de máquinas, pedreiros, carpinteiros, pintores, mecânicos, electricistas, pessoal técnico e administrativo.
Muitos dos trabalhos de estradas eram executados por administração directa com esse pessoal a que se juntavam assalariados quando necessários. Com essa mão-de-obra se executaram muitos trabalhos rodoviários principalmente pavimentações betuminosas de troços de estradas em "macadame" e até em terra batida.
Entre Oliveira de Frades e Varzielas (nas proximidades do Caramulo) foram betuminados vários quilómetros de estrada por administração directa no meu tempo. Abriram-se pedreiras em Campia, explorou-se pedra, produziu-se brita e gravilha e abasteceram-se os tanques de betume necessários para o efeito na refinaria de Leixões.
O último troço a pavimentar do referido percurso foi realizado por duas brigadas que partindo dos seus extremos se planeou que se encontrassem no final na povoação de Alcofra.
Esse trabalho era orientado pelo chefe de serviços, função que era desempenhada por mim próprio sob a supervisão do director de estradas.
Na altura o director era o engenheiro Correia de Sá, que estava próximo de atingir o limite de idade e havia sido acometido por um AVC, encontrando-se algo diminuído fisicamente. Mesmo assim, como era meu dever, fui-o informando do decorrer dos trabalhos e quando as duas frentes estavam praticamente a encontrar-se em Alcofra convidei-o a ir comigo para assistir ao final da obra. Ele dispôs-se a acompanhar-me no meu carro.
Quando chegámos a Alcofra as duas brigadas estavam muito próximas uma da outra. Visitamos as obras, falamos com os encarregados e aguardamos o final dos trabalhos na referida povoação.
Enquanto isso acontecia apareceu junto de nós o padre da aldeia. Quando nos viu aproximou-se e abraçou com efusão o director de estradas.
Ao que vim a saber eram amigos de longa data. Tinham convivido muito quando o engenheiro Correia de Sá, na sua juventude, tinha andado pelo Caramulo projectando estradas e o padre era coadjuvante do pároco local. O meu director tinha mesmo sido convidado a instalar-se na casa paroquial do Caramulo onde também vivia o actual padre de Alcofra, igualmente muito jovem na altura.
Foi com um agradável prazer que se encontraram e recordaram os seus tempos de juventude. O padre convidou-nos para a sua casa, a fim de nos refrescar-mos um pouco pois nessa tarde de verão estava muito calor. Aceitamos o seu convite e ele recebeu-nos com muita hospitalidade na sua sala, tendo rapidamente posto à nossa disposição: queijo, presunto, chouriço e diversas bebidas frescas incluindo uísque. O senhor director preferiu precisamente esta última bebida de que se serviu por diversas vezes.
Com receio de que a mesma, dado ser muito alcoólica, lhe fizesse mal lembrei-lhe que talvez fosse melhor misturar ao uísque um pouco de água do castelo. Mas ele retorquiu-me que uísque lhe dilatava as veias e que o resultado disso só poderia trazer benefício à sua circulação sanguínea. Por isso continuou conversando e bebendo.
A certa altura levantou-se inseguro da mesa e perguntou ao nosso anfitrião:
- Senhor abade, onde posso mijar ?
O padre indicou-lhe o quarto de banho e ele cambaleando para lá se dirigiu. Quando regressou continuava a cambalear, e vinha com as pernas das calças mijadas.
Perante esta situação tomei a iniciativa de lhe lembrar que eram horas de regressarmos a Viseu. Despedimo-nos do padre. Enfiei-lhe o meu braço e conduzi-o para o automóvel.
A viagem de regresso foi completamente louca. Não pela velocidade, que foi moderada, mas pela conversa que tivemos. Ele, muito eufórico, falou-me dos seus ancestrais, principalmente dos Correias de Sá e Benevides. Deteve-se particularmente em Salvador Correia de Sá, seu antepassado, que foi governador e capitão-geral do Rio de Janeiro e até governador-geral do Brasil. E eu não lhe querendo ficar atrás revelei-lhe que descendia de um bisneto de Egas Moniz, de nome Gonçalo Viegas que por ser muito esbelto foi cognominado de Magro, nome que juntou ao seu e deu origem à família dos Magros de que ainda hoje há três ramos: o de Montalegre, a que pertenço, o de Mondim de Basto e o de Malpica, Castelo Branco.
Foi uma conversa incrível que eu nunca pensei vir a ter com o senhor director. Só foi possível por que ele estava perturbado pelo álcool e porque eu próprio alimentando a sua euforia  resolvi desvendar, num ambiente pouco normal, o segredo que tinha mantido ao longo dos anos acerca das minhas remotas origens.
Viveram-se entre nós, naquela viagem, momentos únicos quando quer um quer o outro desvendaram as ligações aos seus célebres ancestrais de uma maneira apaixonada.
Esse ambiente acabou quando parei o carro junto à porta da casa do senhor director, o ajudei a sair do veículo e de braço dado o encaminhei para a esposa a quem tive de avisar:
- Minha senhora, a viagem correu muito bem. O marido da senhora encontrou um amigo de juventude. Bebeu-se um pouco. O senhor director e eu próprio encontramo-nos algo eufóricos, mais nada do que isso.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

O capitão de artilharia

Depois de ter terminado o curso de oficial miliciano na Escola Prática de Vendas Novas fui colocado no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves sediado em Paramos-Espinho.
Esta unidade militar tinha por função, juntamente com uma Bateria instalada em Leixões, defender a cidade do Porto de um possível ataque aéreo.
O referido Grupo de Artilharia situava-se próximo do Aéreo Clube da Costa Verde mesmo junto ao mar e à Barrinha de Esmoriz. O quartel era desabrigado embora ao seu redor se perfilassem numerosos pinheiros e eucaliptos de elevado porte. Nas noites chuvosas e ventosas de inverno com as fortes bátegas de água e as violentas rajadas de ventos criava-se no quartel um ambiente apocalíptico para que contribuía também o ranger constante dos ramos das árvores. 
Depois de publicada a Ordem de Serviço diária os militares que não tinham quaisquer funções a cumprir podiam abandonar o quartel ficando no mesmo somente aqueles que estavam designados para o cumprimento de qualquer missão como os sentinelas e os oficiais, sargentos e cabos de dia.
No cumprimento do cargo de oficial de prevenção, como aspirante a oficial miliciano, assessorei muitas vezes o oficial de serviço que cabia em regra a um tenente ou capitão. Esse oficial de serviço era o primeiro responsável por tudo quanto acontecesse na unidade militar até ao dia seguinte e o oficial de prevenção o seu imediato. 
Das tarefas que ambos faziam durante a noite uma delas era passar em revista periodicamente as sentinelas espalhadas por diversos pontos dos muros envolventes do quartel, vigiando para que não houvesse qualquer tentativa estranha de intrusão. Essa revista também era feita por sargentos e cabos intervaladamente sendo obrigados os mesmo a dar conhecimento ao oficial de serviço, no final da tarefa, do resultado das suas diligências. 
Com alguns capitães e tenentes, quando escalados para oficias de dia, havia a concordância de se dividir a noite com o oficial de prevenção (aspirante a oficial ou alferes) de modo a permitir que cada um deles descansasse pelo menos três horas, rendendo-se ao fim desse período de tempo. 
Com o capitão Ferreira isso porém não acontecia. Quando se era designado para o assessorar a noite era completamente perdida. 
No inverno, junto ao mar, as noites são assustadoras com o vento a sibilar, as árvores constantemente a baloiçar, os seus ramos a ranger e as chuvadas intermináveis a desabar sobre o terreno. 
Foi numa noite dessas que me aconteceu uma vez ser oficial de prevenção do capitão Ferreira. A nossa "base" era a sala de estar da messe de oficiais. Aí recebíamos os sargentos e cabos de serviço que nos vinham periodicamente dar conhecimento dos resultados das suas revistas e daí partíamos também para a nossa própria ronda aos sentinelas, e aí regressávamos quando terminada. 
Fora esses períodos conversávamos sobre os mais diversos assuntos. Nessa noite, depois de esgotados todos os assuntos, resolvi fazer uma abordagem no sentido de ver se demovia o capitão Ferreira da sua intransigente posição. Falei-lhe que os seus colegas, em geral, dividiam a noite desde as vinte e quatro horas até às seis horas do dia seguinte no sentido de permitir que cada um dos oficiais descansasse pelo menos três horas. Ele, que era muito rigoroso no cumprimento do R.D.M. (Regulamento de Disciplina Militar) disse-me logo que não tinha nada a ver com o que os outros faziam. Com ele o que estava regulamentado era para cumprir integralmente e nessa matéria não transigiria. Ele respeitava os regulamentos e a sua vida militar pautava-se por cumprir e fazer cumprir o R.D.M. 
Depois de o ouvir insinuei que isso não era bem assim. O que fui dizer. O capitão empertigou-se e, sentindo-se injustiçado, quis logo saber o que é que eu estava insinuando. 
Depois de muito instado acabei por lhe dizer que sendo oficial de artilharia e estando regulamentado no R.D.M. (que foi mandado elaborar pelo Conde de Lippe quando foi incumbido da reforma do Exército Português no tempo de D. José I, em 1762, e ainda vigorava) que sendo ele oficial de artilharia e estando regulamentado que os oficiais dessa arma deviam usar pêra e bigode, ele que não usava uma coisa nem outra, se encontrava em incumprimento. 
Soltou uma gargalhada. E acabou por considerar que nesse aspecto eu tinha razão. 
Mas mesmo assim não permitiu que eu fosse descansar para o meu quarto algumas horas.







Os signos do Zodíaco

Quando terminei o meu curso consegui, como já referi, fazer parte de um Plano de Abastecimento de Água ás povoações rurais do Nordeste Transmontano.
Mas antes de iniciar o meu trabalho em Bragança tive de realizar um estágio nos Serviços de Salubridade em Lisboa que durou três meses.
Aí, na capital, conheci um meu colega, também do norte, que estava colocado nos referidos Serviços de Salubridade com quem acamaradei. Esse meu colega, um pouco mais velho do que eu, solteiro era um grande apreciador de música sinfónica o que me levou, acompanhando-o,  a assistir a diversos concertos de música clássica.
Também apreciava ouvir palestras culturais de vária ordem e por essa razão me convidou a frequentar a Sociedade de Geografia e outros centros culturais a fim de assistirmos a diversas conferências.
Era um indivíduo singular, não se deixando envolver nos problemas da vida quotidiana, parecia viver nas nuvens.
A dada altura da minha estadia em Lisboa passei também a acompanhá-lo às refeições numa casa particular que ele frequentava na Alameda D. Afonso Henriques, próximo do Instituto Superior Técnico e do Instituto Nacional de Estatística. Essa casa recebia diversos comensais que tinham por hábito reservar as suas próprias mesas para si e para quem os acompanhasse.  
Esse meu colega tinha por companheiro às refeições um técnico do referido Instituto Nacional de Estatística, organismo que funcionava num edifício muito próximo daquele que frequentávamos, como já referi. Passei também eu a fazer parte da mesa deles. E não tardei de ouvir dos dois constantemente a afirmação que as alterações dos seus temperamentos, as suas boas ou más disposições, os seus dias de sorte ou de azar, os seus amores e desamores eram praticamente idênticos nas mesmas alturas porque eram gémeos.
Eu cheguei a cansar-me de os ouvir sobre as semelhanças que diziam acontecer nos seus comportamentos em determinadas épocas do ano. Até que num certo dia o meu colega surpreendeu-nos com a abertura de uma garrafa de champanhe que tinha trazido. Disse-nos que fazia anos e por isso nos convidava a beber uma taça com ele.
- Anos ?! - interrogou com admiração o técnico de estatística. - Não, não pode fazer anos hoje.
- Essa agora,  retorquiu-lhe o meu colega. Nasci exactamente nesta data, por isso faço hoje anos.
- Então se faz hoje anos, não é gémeo - retorquiu-lhe o outro.
- Não sou gémeo ? Essa agora ! Isso é que sou, porque tenho um irmão que nasceu na mesma altura que eu.
Perante esta troca de palavras entre os dois não pude reprimir a enorme vontade de me rir e soltei uma estrondosa gargalhada.
Afinal um era do signo dos gémeos enquanto o outro era gémeo porque tinha um irmão nascido na mesma altura que ele.
Nunca mais esqueci que sendo de signos do Zodíaco diferentes como pôde ser a vida dos dois tão igualmente influenciada pela trajectória do sol, das constelações e dos astros.
Desde essa altura nunca mais acreditei na infabilidade dos signos do Zodíaco.

terça-feira, 3 de maio de 2016

O Santo Apolinário

Em Urros, aldeia serrana do concelho de Torre de Moncorvo, houve em 1966 uma perturbação da ordem pública porque alguns ânimos exaltados denunciaram que a imagem de Santo Apolinário, existente na capela do referido santo, teria sido trocada por outra de muito menos valor.
Foi posta em causa, com essa atitude popular, a Comissão de Festas do Santo Apolinário de Urros que acusaram de ter vendido a antiga imagem do santo, considerada valiosa, substituindo-a por outra sem valor, quando foi mandada restaurar a primeira.
Para muitos a imagem, depois de restaurada, não tinha a expressão a que as gentes da aldeia se haviam habituado e o olhar do santo era diferente. A cadeira onde se sentava não era a mesma e a mitra que usava também não, além do cordão da cruz ser mais cumprido. Mas o que mais desagradava ao povo era a fisionomia do santo que era outra.
Desta contestação surgiu a suspeita de que o Presidente da Comissão de Festas professor Jozino Amado teria vendido a verdadeira imagem e a fizera substituir por uma semelhante, mas sem qualquer valor.
E esse assunto tornou-se na conversa habitual naquele fim de verão de 1966 dos habitantes de Urros, uma aldeia muito antiga que recebeu foral de D. Afonso Henriques e que noutros tempos chegou a ser mesmo sede de concelho.
A sua população tem sido muito devota do Santo Apolinário desde tempos imemoriais.
Com este nome há dois santos: um foi bispo de Hierápoles na Frígia e outro que foi bispo de Ravena, na Itália.
Desconheço qual dos dois está representado na Capela de Urros, capela que dispõe de um retábulo-mor, retábulos laterais e tecto artisticamente notáveis no parecer de peritos entendidos na matéria.
A modificação da fisionomia da imagem do santo era o que mais entristecia o povo. No princípio algumas (poucas) pessoas timidamente murmuravam que aquele santo não era o deles. Depois essa desconfiança ganhou uma adesão cada vez maior. E foi de tal maneira grande que muitos se revoltaram com a situação originada pelas suspeitas, bradando que era uma vergonha o que estava a acontecer, que todos haviam sido enganados pelo professor Amado. O professor foi insultado e pela calada da noite até lhe apedrejaram a porta da casa.
O professor tinha, ao longo de uma carreira de algumas dezenas de anos, ensinado as primeiras letras a várias gerações de crianças de Urros. Tinha sempre sido muito considerado pelos seus antigos alunos e restantes concidadãos como um homem justo e honesto.
Mas depois da restauração do santo tudo se alterou. Agora, de noite, alguns passando pela sua rua, pouco iluminada insultavam-no em altos berros:
- Ladrão que nos enganaste a todos. Vendeste a imagem do santo, gatuno !
Perante tal situação a Comissão de Festas do Santo Apolinário de Urros, intentou um processo judicial contra várias pessoas, acusando-as de haverem lançado criminosa e falsa denuncia de venda, pela mesma comissão, da imagem do santo na altura em que fora a restaurar.
Em vias disso o juiz do círculo judicial de Bragança mandou fazer um exame à imagem do Santo Apolinário existente na Capela de Urros por dois peritos de Arte Sacra.
Os mesmo peritos elaboraram um relatório onde consta que sobre a identidade da escultura não podem ser formuladas quaisquer dúvidas. Embora na restauração da imagem tivessem sido introduzidas algumas modificações, o referido exame demonstrou que não houve qualquer troca de imagens sendo por isso a originária aquela que, depois de restaurada se encontra na capela do santo.
Os referidos peritos qualificados afirmam ainda no seu relatório que a imagem revela moleza de formas, no tratamento das feições, mãos, panejamentos e outros pormenores, não tendo (a imagem) grande interesse plástico.
"É uma obra de imaginária de pouco valor que não dignifica o conjunto, verdadeiramente notável, constituído pelo retábulo-mor, retábulos laterais e tecto da capela a que a imagem pertence" refere-se no mesmo relatório.
Depois disto os ânimos exaltados de muitos habitantes de Urros foram acalmando ao longo do tempo. A serenidade e a paz acabaram por regressar a Urros. Mas em algumas pessoas mais idosas ainda permanecem no fundo algumas dúvidas quando o santo as olha de uma maneira diferente daquela a que sempre se habituaram. E em voz baixa continuam a murmurar:
- Hum, este não é o nosso Santo Apolinário...




Por montes e vales montado num burro

Após ter terminado o meu curso de engenharia civil procurei emprego. Passados poucos meses consegui ser integrado num grupo de trabalho que tinha por missão desenvolver um plano governamental tendo em vista dotar com abastecimento de água potável as povoações com mais de cem habitantes do nordeste transmontano.
Depois de estagiar nos Serviços de Salubridade, em Lisboa, e nos Serviços de Hidrologia no Porto fui colocado em Bragança com a missão de definir uma origem para o futuro abastecimento de água potável a diversas aldeias do referido distrito.
Isto aconteceu nos anos de 1957 e 1958, há portanto mais de meio século, quando eu tinha vinte e um-vinte e dois anos de idade. Nessa época havia um atraso muito grande nas zonas rurais sobre muitos aspectos nos quais se incluíam os deficientes abastecimentos de água às populações que eram em muitos casos levados a efeito através de fontes de chafurdo e à não existência de saneamento básico e de vias de comunicação rodoviárias.
Esse atraso era particularmente acentuado no interior do país, principalmente na região de Bragança.
Nessa minha actividade visitei mais de seiscentas povoações servindo-me em muitos casos de caminhos impraticáveis à locomoção automóvel.
Nas minhas deslocações utilizei muitas vezes o cavalo, o burro e em alguns casos as minhas próprias pernas. Fiz por isso longas caminhadas pelo planalto transmontano e muitas viagens montado em cavalos ou burros.
Tendo vivido a minha juventude na cidade do Porto nunca tinha montado um cavalo ou um burro até aos meus vinte e um anos de idade. Quando o fiz pela primeira vez em Mogadouro não me senti nada seguro em cima de um cavalo, pois encontrei-me demasiado acima do solo prevendo que, a verificar-se a minha queda daquela altura, não ficaria fisicamente bem tratado. Essa insegurança não me acontecia com os burros. Sendo mais baixos que os cavalos, quando os montava quase que chegava com os pés ao chão, pelo que me sentia muito mais à vontade em cima deles.
Por isso, em muitas das minhas deslocações, optava por ser transportado por burros quando era impraticável o acesso automóvel.
Era sempre acompanhado nessas minhas jornadas por um fiscal da câmara municipal da área que, montado noutro burro, levava consigo várias medidas (meio litro, um litro, dois litros...) medidas que eram utilizadas para calcular os caudais das nascentes inspeccionadas. Enquanto o fiscal assegurava que a água corresse em bica directamente para uma das medidas eu, com a ajuda de um cronómetro, registava o tempo que demorava a enchê-la.
Desse valor fazia a respectiva anotação, registava nas cartas topográficas a localização das nascentes e calculava o caudal que as mesmas garantiriam no seu estado natural em vinte e quatro horas.
Dessa vida, ao ar livre, percorrendo  montes e vales, tenho gratas recordações. Era sempre muito bem recebido pelas populações que me mimoseavam com o que melhor possuíam nas suas dispensas.
Mas há uma dessas viagens que, quando a recordo, sempre o meu rosto se abre num largo sorriso.
Certa vez, depois de vestir a minha indumentária própria para essas andanças, composta por botas cardadas, calças de cotim, camiseta e chapéu de aba larga, montei no meu jerico em Alfândega da Fé para me deslocar a Vale Pereiro. Acompanhava-me o senhor António, fiscal da Câmara de Alfândega da Fé, igualmente montado num burro no qual transportava as diversas vasilhas necessárias para medir os caudais das nascentes. Depois de alguns quilómetros percorridos passámos por um pequeno aglomerado que não fazia parte do nosso programa por ter muito pouca população.
Quando o acabava-mos de atravessar fomos interpelados por um homem que em altos berros chamava por nós.
- Eh ! Venham cá ! Venham cá !
Tivemos que providenciar para que os burros interrompessem o seu andamento e como não percebíamos o que o homem queria o fiscal António, obrigando o seu burro a inverter a marcha, foi ao seu encontro para procurar saber o que é que ele pretendia.
Passados breves momentos o meu companheiro de jornada troteou até mim com um larga sorriso no rosto informando-me que o indivíduo que nos chamava queria que lhe consertássemos (deitássemos uns pingos de solda) numas suas panelas que tinha rotas pois julgava que nós éramos caldeireiros.



segunda-feira, 2 de maio de 2016

O Senhor Barão

O meu tio Zeferino era Barão. O pai dele fez fortuna no Brasil. Mas não fez somente fortuna, também socialmente se elevou de tal forma que chegou a ser cônsul de Portugal em Santos.
Regressado a Portugal construiu em Cete, na proximidade de Paredes, um palacete cercado por uma apreciável área de terreno que foi ocupada com anexos, jardins e terreno agrícola.
Na referida povoação de Cete patrocinou diversas obras: como a abertura de novos arruamentos, a construção do quartel de bombeiros voluntários e a reconstrução da igreja matriz.
Pelos serviços prestados ao país em Santos, no Brasil e pela sua contribuição na melhoria das infraestruturas de Cete o Rei D. Carlos I concedeu-lhe o título de Barão por três gerações.
Por isso o seu filho Zeferino Lourenço Martins, casado com uma irmã de minha avó paterna, também beneficiou do referido título de nobreza.
Eu conheci bem esse meu tio por afinidade. Era um homem muito simples e muito comunicativo. Não me lembro, no entanto, de o ver ocupado alguma vez em qualquer actividade.
Vivia, ao que julgo saber, absolutamente dos rendimentos que o pai lhe havia transmitido. Dos rendimentos de Cete e do Brasil e dos "papeis" como ele dizia e que eu, mais tarde, percebi tratar-se de acções da bolsa que tinha em diversas empresas nacionais.
Era muito dedicado à família acompanhando os seus próprios filhos e os seus sobrinhos na sua vida escolar e até extra-escolar.
Lembro-me que, aquando do meu exame do segundo ano (hoje sexta classe) de ensino secundário, me acompanhou por diversas vezes ao Liceu D. Manuel II (hoje Rodrigues de Freitas) no Porto.
Nesse tempo só dispensava da provas orais quem obtivesse dezasseis valores nas provas escritas. Não tendo obtido essa nota fui, por isso, submetido a provas orais.
O senhor Barão, como algumas pessoas ainda o tratavam, esteve presente nas minhas provas orais de matemática e de ciências naturais.
Na primeira das referidas disciplinas portei-me muito bem, pois estava preparado e tinha pelos números alguma inclinação. Mas nas ciências naturais já não estava tão seguro. Nessa matéria tinha até algumas dificuldades.
Naquele tempo os assistentes aos exames orais só podiam entrar e sair da sala de exames nos finais das provas de cada examinando ou no início das mesmas.
Quando estava a ser questionado em ciências naturais e depois de ter dado algumas respostas pouco correctas a questões que me foram apresentadas pelo examinador verifiquei que o meu tio Zeferino, infringindo as regras, saía pedindo desculpa ao júri.
A minha prova, depois disso, continuou e até consegui concluí-la com algumas respostas acertadas.
Quando acabei o exame e sai da sala preocupei-me em saber o que se havia passado com o meu tio Zeferino. Encontrei-o no hall do liceu verdadeiramente zangado.
- Parece impossível, disse ele. Como é que foste capaz de dizer tanta asneira em ciências naturais depois de uma boa prova de matemática. Enervaste-me de uma maneira tal que tive de sair da sala de exame e o pior é que não consegui segurar-me e estou todo mijado.




domingo, 1 de maio de 2016

O senhor professor

O meu pai sendo o chefe de uma família numerosa e com dificuldades económicas evidentes para alimentar, vestir, calçar e educar os seus oito filhos, aparentemente estava sempre disposto para uma boa brincadeira e uma estridente gargalhada.
Os problemas do dia-a-dia esquecia-os completamente perante uma boa mesa de que teria de fazer parte vinho de qualidade e  gente para dialogar. 
Também adorava a presença de jovens raparigas, sobretudo se o peito delas era volumoso, cheio de patriotismo como ele dizia. 
Foi um homem que viveu sempre fora da realidade. Nunca admitiu viver em dificuldade, mesmo quando era assediado pelos fornecedores da nossa casa reclamando o pagamento das nossas contas.
Quando algum de nós se lamentava de qualquer espécie de carência sempre retorquia que melhores dias haviam de vir e que ele era afinal um proprietário, com casa e terrenos na praia de Francelos, além de descender de famílias fidalgas.
Era diplomado em engenharia. Tinha cursado a Escola Superior Politécnica do Porto, anteriormente à criação da Universidade na referida cidade. Nesse tempo no Porto o ensino superior era ministrado nas grandes escolas, tais como: A Escola Médica-Cirúrgica, A Escola Superior de Belas Artes, A Escola Politécnica e outras.
A escola que frequentou estava instalada no edifício ainda hoje bem conservado existente entre o Jardim da Cordoaria e a Praça dos Leões, conhecido actualmente pela Universidade. Ali eram ministradas as aulas teóricas dos futuros engenheiros, mas as aulas práticas e as oficinas tinham lugar em pavilhões no interior do espaço murado que circundava o Palácio de Cristal.
Depois de formado trabalhou algum tempo nos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento da cidade do Porto e no Ministério das Obras Públicas acabando a sua vida activa como professor de matemática em estabelecimentos particulares de ensino uma vez que era detentor de um diploma que lhe permitia ministrar a referida disciplina até ao antigo sétimo ano dos liceus (hoje décimo primeiro ano escolar). 
Era por isso conhecido pelo senhor professor, na última parte da sua vida. 
O meu pai era uma pessoa convivencial que fazia amigos com facilidade, desprendido no que se refere ao dinheiro que para ele não servia para outra coisa que não fosse para gastar.  
Era muito distraído e por via dessa particularidade em várias ocasiões lhe aconteceram situações caricatas. Duas delas fazem me sempre sorrir quando as recordo. 
A que vou relatar em primeiro lugar foi-me contada por ele e passou-se na Praia de Francelos na sua juventude. O meu  pai frequentava muito esta praia porque os seus progenitores (os meus avós) construíram lá três pequenas moradias destinadas uma a cada um dos seus três filhos tendo até vivido numa delas alguns anos.
Aí em Francelos, no tempo da caça, o meu pai percorria longos quilómetros pelas dunas existentes junto ao mar com uma espingarda de caça belga (como ele acentuava sempre quando se referia à sua caçadeira) procurando aves marinhas, preferencialmente patos bravos a fim de os abater.
Uma vez avistou por cima de uma duna o que lhe pareceu ser uma grande e volumosa ave. Aproximou-se dela o mais que pode, com todas as precauções, rastejando na areia. Quando lhe pareceu que a poderia alvejar com sucesso aprontou-se para disparar. Nesse preciso momento o que se lhe deparou não foi, entretanto, um pato real como imaginava mas um homem com as calças na mão puxando-as para cima e apertando-as com um cinto, depois de ter feito ao vento as suas necessidades. Homem esse que usava na sua cabeça como cobertura um enorme chapéu de aba larga. O meu pai ficou suspenso e boquiaberto. O referido chapéu, única peça da indumentária do homem que vira por cima da duna tinha-lhe parecido um soberbo pato real. Providencialmente o referido indivíduo ergueu-se no momento imediatamente anterior ao disparo que não aconteceu. 
Em segundo lugar passo a relatar outra situação que se verificou também com o meu pai em época já avançada relativamente à que acabo de relatar. 
Quando exerceu o professorado no Colégio de Marco de Canaveses nós já vivíamos no Porto, na rua Aníbal Cunha, rua paralela à Rua de Cedofeita. O meu pai, no fim de semana viajava de autocarro todas as sextas-feiras para o Porto regressando nos domingos à tarde ao Marco. Trazia nas sextas-feiras uma mala com alguma roupa que usara durante a semana para ser lavada e tratada. 
Numa determinada sexta-feira chega a casa à hora normal, larga a mala, cumprimenta a tropa toda, informa-se dos acontecimentos vividos na sua ausência e desanda para o seu café, existente na nossa rua, muito próxima da nossa casa, para cumprimentar os amigos que por lá faziam paragem e para jogar uma partidinha de damas, jogo em que era um verdadeiro mestre. 
A minha mãe, depois de ele partir, abre a mala e com o que se depara? No interior da mesma mala havia: várias calcinhas de mulher, "soutiens", camisinhas, corpetes, tudo roupa feminina. Ficou furiosa no momento imediato a essa descoberta mas depois acalmou e considerou que poderia ter havido simplesmente uma troca de malas. Então teve um ataque de riso chamando-nos para vermos o que se passava. 
Efectivamente o nosso pai havia trocado a sua mala por outra idêntica à dele pertencente a uma senhora que havido entrado no autocarro também em Marco de Canaveses.
Um dos meus irmãos foi rapidamente chamá-lo ao café e ele não ficou nada satisfeito com o caso, pois teve de interromper a sua partidinha de damas e de se dirigir à Central de Camionagem do Porto, onde estava também já a senhora, legítima proprietária da mala, que ele tinha trazido por engano para fazer a destroca. 




sábado, 30 de abril de 2016

Numa noite fria

Numa noite fria apeteceu-me passear. Caminhei por ruas de que não me lembro e fui surpreendido numa viela escura e sozinha por música de dança.
Era um turbilhão avassalador o ruído dos tambores, dos pratos e dos cornetins.
Deixei-me arrastar até ao local de onde vinha esse ruído avassalador.
Uma rapariga do povo, surgindo do escuro, informou-me que se tratava de um ensaio.
- Aos domingos é que eles tocam a valer. Há baile todos os domingos.
- No próximo domingo hei de vir.
- Ah ! Ah ! Ah ! - fez ela numa gargalhada doida e os seus olhos faiscavam de malícia. Isto não é para si.
Fez-me um sinal com o indicador duma das suas mão e reparei, então, num pequenito empoleirado numa janela seguindo a música.
A seguir o silêncio reinou entre nós, a rapariga fremente de prazer, o rapaz regorgitante de alegria e eu atordoado de desejo, de música e de vergonha.
Depois deixei de ouvir a música, de sentir a rapariga e de notar o rapaz.
Caminhei pela viela mal calcetada, em direcção a casa. Caminhei, cheio de vergonha, tropeçando aqui e ali.
Não ia longe porém, quando percebi que o rapazito me chamava:
- Senhor ! Meu senhor !
- Que me queres tu, rapazito ?
- A minha irmã mandou-me chamar por si. Meu senhor dê-me um escudo.
- Canalha ! Sai-me da vista ou dou-te um par de açoites ! Foge ! Judas !
Ele correu com quanta força tinha. Só bem longe é que parou para me dizer:
- É doido ! ...
E eu, com os cabelos molhados da chuva, e uma grande confusão no espírito, regressei a casa naquela noite fria.



Loucuras de rapaz

Dos companheiros com quem convivi na minha juventude na cidade do Porto houve um que me foi muito próximo: o meu primo Fernando José.
Convivi com ele, porém, em permanente sobressalto pois o Fernando José só se sentia bem quando, libertando alguma da sua adrenalina, cometia verdadeiras loucuras.
Na companhia dele, por exemplo, não era necessário esperar uma eternidade numa fila para se obterem os bilhetes para uma sessão de cinema ou para assistir a qualquer outro espectáculo.
Aproximava-se da pessoa que estava para ser atendida, tocava-lhe no ombro e com toda a correcção pedia-lhe licença para dar duas palavrinhas ao senhor (ou senhora) da bilheteira.
Apanhando todos de surpresa não me lembro de alguma vez ter sido recriminado ou de alguém lhe ter negado o que lhe solicitava.
Depois era só pedir os bilhetes e pagá-los.
Era atrevido por natureza mas tinha um conhecimento inato da psicologia e do comportamento humano. Em regra a sua análise era certeira, mas havia por vezes situações que se não desenrolavam como esperava. Estou a lembrar-me de, numa certa noite, me ter confidenciado que sabia, por lho terem dito, da existência de uma "casa de meninas" muito novas verdadeiros sucos da barbatana.
Sabia que a referida "casa" se situava numa determinada rua do Porto, mas não tinha fixado o número da porta. Mas isso para ele não era importante. Bastava deslocarmo-nos até essa rua que havíamos de descobri-la. E fomos os dois até lá. Verificamos, depois de percorrer a rua em causa, que num determinado prédio a porta de entrada estava entreaberta. Resolvemos aguardar os acontecimentos, por perto. A dada altura entrou um homem pela referida porta. Mais adiante entraram mais dois.
Para o Fernando José não havia nenhuma dúvida. Estava ali o que procurava-mos.
Eu ainda pus algumas objecções. Mas ele encaminhando-se para a porta entreaberta entrou decidido. E eu entrei também.
A primeira impressão que tive foi a de que a "casa" estava à média luz. Mas, depois de percorrermos um corredor e desembocar-mos numa sala, deparamos com ... um caixão com gente ao seu redor velando ... um morto!
Aguentamos alguns minutos participando no velório, depois sorrateiramente saímos e rimos como uns doidos quando nos encontramos cá fora na rua.
O Fernando José, em geral, não se controlava. O que tinha vontade de fazer fazia. Se deparava com alguém cujo aspecto ou comportamento o irritava, não estava com meias medidas, procurava uma oportunidade para lhe enfiar um cachaço, por vezes bem forte, no pescoço. O homem ficava estupefacto mas a justificação vinha imediatamente:
- Oh ! desculpe! As minhas desculpas. O senhor é muito parecido com um amigo meu. Visto de traz pareceu-me mesmo ele. Peço-lhe imensa desculpa.
Esta situação correu sempre bem, mesmo quando o cachaço era de tal maneira forte que os bonés daqueles que os usavam iam parar bem longe.
Quando regressava-mos a casa, a pé, vindos da baixa do Porto, subia-mos a rua dos Clérigos e passava-mos pela Praça dos Leões. Havia aí uma pensão que funcionava no primeiro e segundo andares. O acesso à pensão era efectuado por uma porta, ao nível do rés-do-chão, que estava sempre aberta. Depois da porta havia um corredor, com vários vasos de plantas, que nos conduzia às escadas que subiam para os andares. Muitas vezes o Fernando José fazia aí uma paragem e dizia-me:
- Aguenta aí que eu vou regar as plantas. E, embora lhe lembrasse que tinha bem perto o café Piolho onde poderia satisfazer as suas necessidades fisiológicas, mesmo assim não desistia de ir regar as plantas.
Numa discussão na Brasileira, já ia alta a noite, com um jornalista, por um motivo de que já nem me recordo, acabaram por se tratar mal mutuamente. O Fernando José a dada altura saiu do café, procurou um polícia e ordenou-lhe com grande autoridade que obrigasse o jornalista a dirigir-se à esquadra mais próxima pois havia sido insultado e ameaçado pelo que pretendia queixar-se dele.
E, para meu espanto o polícia obedeceu-lhe e encaminhou-os para a esquadra junto ao Governo Civil na Batalha. Aí foram ouvidos os dois acabando o jornalista por pedir desculpa ao meu primo se quis resolver a contenda e sair da esquadra.
Mas a maior loucura que o Fernando protagonizou na minha presença foi com certeza "a história rocambolesca do roubo de um automóvel na Feira Popular" título da notícia que o jornal O Primeiro de Janeiro deu ao acontecimento que adiante vou relatar.
Naquele tempo (1958) realizava-se nos jardins do Palácio de Cristal a Feira Popular do Porto entre o mês de Junho e o fim do mês de Agosto.
Nesses tempos (anos cinquenta e sessenta) também ocorria durante o Verão o circuito automóvel da fórmula um da Boavista, igualmente na cidade do Porto. Nesse circuito realizado em 1958, uns dias antes dos acontecimentos que vou relatar, competiam por vezes entre outros o piloto português Casimiro de Oliveira (irmão do cineasta centenário Manuel de Oliveira) e os mundialmente célebres Stirling Moss e Juan Manuel Fângio.
A referida Feira Popular realizava-se na zona envolvente do Palácio dos Desportos, hoje Pavilhão Rosa Mota.
Havia, como acontece nas feiras populares toda a espécie de divertimentos. Nas margens da Avenida das Tílias, avenida central dos jardins, formaram-se esplanadas e promoviam-se produtos e artefactos, havendo pelo menos um stand de automóveis expondo os mais recentes modelos de reconhecida marca. Nessa noite, na primeira fila do stand, de frente para a referida Avenida das Tílias, encontrava-se exposto um automóvel descapotável de cor vermelha reluzente que atraía as atenções de quem passava.
O Fernando José, rodeando o carro, ficou verdadeiramente entusiasmado com o veículo. Solta mesmo diversas exclamações de admiração mostrando grande interesse pelo automóvel. Atitude que, evidentemente, é notada pelo responsável do stand que o aborda e se põe à sua disposição para lhe fornecer qualquer informação sobre o carro. Depois de uma troca de palavras entre os dois acerca das "perfomances" e características do bólide o Fernando José pede autorização para se sentar no lugar do condutor do descapotável. Confortavelmente instalado convida-me para me sentar ao seu lado o que não aconteceu, dado  que preferi ficar de fora.
Sentado ao volante do automóvel reinicia a conversa  com o responsável do stand e, a dada altura, solicita-lhe mesmo a chave de  ignição para ouvir o motor do carro a trabalhar.
Amavelmente o homem acedeu ao seu pedido e ele imediatamente resolve ligar o motor do carro .
Continua, apesar do barulho do motor, a dialogar com o representante do stand que, porém, tem de interromper a conversação para atender alguém que o reclama.
Mal o homem vira costas o Fernando José engrena a primeira velocidade, acelera o motor e projecta o carro para a Avenida das Tílias que, nessa noite, se encontrava pejada de gente.
Vira para a direita e movimenta o automóvel pela referida avenida na direcção da saída do Palácio de Cristal, obrigando as pessoas a abrir alas para que o descapotável pudesse seguir em frente.
Fiquei verdadeiramente preocupado com o que estava a acontecer e corri quanto pude para tentar impedir que ele prosseguisse a marcha. Mas a minha tentativa foi em vão.
Foi-me ganhando progressivamente a dianteira, afastando-se cada vez mais e quando cheguei ao portão do Palácio só avistei ao longe as luzes do carro na rua Júlio Dinis, luzes que se tornaram cada vez mais fracas à medida que rolava na direcção da Rotunda da Boavista. Tomei por isso a decisão de apanhar um táxi e de me dirigir a casa de um outro nosso primo, mais velho, já casado que morava próximo do cemitério de Agramonte junto à Rotunda já referida.
Nessa altura já era cerca da meia noite. O Carlos, assim se chamava esse outro nosso primo, já estava deitado quando insistentemente toquei à campainha da sua casa. Veio à porta em pijama, meio ensonado. Rapidamente o informei do que estava a acontecer com o Fernando José. Vestiu-se apressadamente e perguntou-me onde, na minha opinião, o poderíamos encontrar. Conhecendo-o bem respondi-lhe prontamente:
- No Circuito da Boavista.
Retirou o seu carro da garagem e partimos os dois para o referido circuito. Quando nos encontrávamos próximo do Castelo do Queijo passou por nós o Fernando José, cabelos ao vento, no seu descapotável a uma velocidade apreciável. Tentamos persegui-lo mas depressa o perdemos de vista.
Por isso resolvemos parar junto ao Pinheiro Manso e aguardar os acontecimentos.
Aí por duas vezes vimos o Fernando José passar a grande velocidade. Ficámos preocupados pela sua terceira passagem estar demorada, mas depressa verificamos que o descapotável descia a Avenida da Boavista muito devagar acabando por parar perto de nós... sem gasolina. Mal saiu do carro logo me invectivou:
- Dispenso as tuas lições de moral, ouviste?
 O Carlos com muita calma apoderou-se das chaves do carro, arrumou-o melhor que pode e trancou as portas.
Depois entrámos no seu automóvel e seguimos na direcção do Palácio de Cristal deixando o Fernando José na Rotunda da Boavista.
No Palácio entramos em contacto com o responsável do stand de onde havia sido levado o descapotável vermelho, informando-o do local onde se encontrava e de que, aparentemente, não tinha sofrido qualquer estrago.
Entregamos-lhe as chaves do automóvel e o Carlos responsabilizou-se por qualquer prejuízo que pudesse vir a verificar-se no veículo.
Foi quando o homem nos informou que tinha apresentado queixa no posto da polícia existente no recinto da feira contra o Fernando José que havia conseguido identificar.
Pedimos-lhe por isso, que retirasse a queixa ao que ele acedeu, pelo que nos dirigimos os três ao referido posto policial para o efeito.
Mas não foi possível retirar a queixa por o veículo ter sido conduzido sem matrícula o que, nestas condições, não lhe era permitido circular em vias públicas.
- O Fernando José, mais tarde, contou-me que devido a uma infracção que cometeu, um polícia mandou-o parar o que não fez. O polícia, em resultado disso, accionou um apito estridente, puxou de uma caneta e de um bloco de notas mas ficou suspenso pois não pode fazer a anotação que pretendia por o carro não possuir qualquer matrícula -
Depois do insucesso verificado no posto da polícia o Carlos e eu próprio resolvemos regressar a casa que a noite já ia alta.
Na manhã do dia seguinte, dormindo ainda um sono profundo, recuperando dos trabalhos porque havia passado na noite anterior, sou acordado pela minha mãe que me anunciava a presença em nossa casa do Fernando José. Disse-lhe para o mandar entrar para o meu quarto. Mal entrou fez-me de chofre a seguinte pergunta:
- Ouve lá, tu sabes quem era Rocambole ? Aqui no jornal comparam-me ao Rocambole. Quem era esse gajo, pá ?
Naquela ocasião não pude dar-lhe a informação correcta sobre o que me perguntou. Se fosse hoje dir-lhe-ia que o Rocambole nunca existiu. Foi um produto da imaginação de um escritor francês, Ponson du Terrail que celebrizou essa personagem devido à sua fecunda imaginação, envolvendo-o em aventuras de intenso dramatismo nos seus livros, tais como:
- As aventuras de Rocambole,
- A verdade sobre o Rocambole,
- Rocambole na prisão,
- O regresso de Rocambole e muitos outros.
Tudo imaginário, nada de real, o que era bem diferente do que aconteceu com ele, Fernando José, naquela noite de Agosto de 1958 no Palácio de Cristal.





sexta-feira, 29 de abril de 2016

Histórias da vida real

Tendo chegado ao fim a minha página no blogspot "Portugal e o Passado" resolvi iniciar outra nova página 
intitulada "Histórias da vida real".
Trata-se do relato de diversos acontecimentos da vida real que presenciei, de que fui mesmo protagonista
ou de que tive simplesmente, conhecimento.
Histórias que não são mais do que verdadeiras pequenas comédias humanas.
Quem continuará a editar o futuro blog será o meu neto Manuel Gonçalo Gomes de Almeida Pinho Valente,
como aconteceu com o "Portugal e o Passado", tarefa esta que muito apreciei.