domingo, 1 de maio de 2016

O senhor professor

O meu pai sendo o chefe de uma família numerosa e com dificuldades económicas evidentes para alimentar, vestir, calçar e educar os seus oito filhos, aparentemente estava sempre disposto para uma boa brincadeira e uma estridente gargalhada.
Os problemas do dia-a-dia esquecia-os completamente perante uma boa mesa de que teria de fazer parte vinho de qualidade e  gente para dialogar. 
Também adorava a presença de jovens raparigas, sobretudo se o peito delas era volumoso, cheio de patriotismo como ele dizia. 
Foi um homem que viveu sempre fora da realidade. Nunca admitiu viver em dificuldade, mesmo quando era assediado pelos fornecedores da nossa casa reclamando o pagamento das nossas contas.
Quando algum de nós se lamentava de qualquer espécie de carência sempre retorquia que melhores dias haviam de vir e que ele era afinal um proprietário, com casa e terrenos na praia de Francelos, além de descender de famílias fidalgas.
Era diplomado em engenharia. Tinha cursado a Escola Superior Politécnica do Porto, anteriormente à criação da Universidade na referida cidade. Nesse tempo no Porto o ensino superior era ministrado nas grandes escolas, tais como: A Escola Médica-Cirúrgica, A Escola Superior de Belas Artes, A Escola Politécnica e outras.
A escola que frequentou estava instalada no edifício ainda hoje bem conservado existente entre o Jardim da Cordoaria e a Praça dos Leões, conhecido actualmente pela Universidade. Ali eram ministradas as aulas teóricas dos futuros engenheiros, mas as aulas práticas e as oficinas tinham lugar em pavilhões no interior do espaço murado que circundava o Palácio de Cristal.
Depois de formado trabalhou algum tempo nos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento da cidade do Porto e no Ministério das Obras Públicas acabando a sua vida activa como professor de matemática em estabelecimentos particulares de ensino uma vez que era detentor de um diploma que lhe permitia ministrar a referida disciplina até ao antigo sétimo ano dos liceus (hoje décimo primeiro ano escolar). 
Era por isso conhecido pelo senhor professor, na última parte da sua vida. 
O meu pai era uma pessoa convivencial que fazia amigos com facilidade, desprendido no que se refere ao dinheiro que para ele não servia para outra coisa que não fosse para gastar.  
Era muito distraído e por via dessa particularidade em várias ocasiões lhe aconteceram situações caricatas. Duas delas fazem me sempre sorrir quando as recordo. 
A que vou relatar em primeiro lugar foi-me contada por ele e passou-se na Praia de Francelos na sua juventude. O meu  pai frequentava muito esta praia porque os seus progenitores (os meus avós) construíram lá três pequenas moradias destinadas uma a cada um dos seus três filhos tendo até vivido numa delas alguns anos.
Aí em Francelos, no tempo da caça, o meu pai percorria longos quilómetros pelas dunas existentes junto ao mar com uma espingarda de caça belga (como ele acentuava sempre quando se referia à sua caçadeira) procurando aves marinhas, preferencialmente patos bravos a fim de os abater.
Uma vez avistou por cima de uma duna o que lhe pareceu ser uma grande e volumosa ave. Aproximou-se dela o mais que pode, com todas as precauções, rastejando na areia. Quando lhe pareceu que a poderia alvejar com sucesso aprontou-se para disparar. Nesse preciso momento o que se lhe deparou não foi, entretanto, um pato real como imaginava mas um homem com as calças na mão puxando-as para cima e apertando-as com um cinto, depois de ter feito ao vento as suas necessidades. Homem esse que usava na sua cabeça como cobertura um enorme chapéu de aba larga. O meu pai ficou suspenso e boquiaberto. O referido chapéu, única peça da indumentária do homem que vira por cima da duna tinha-lhe parecido um soberbo pato real. Providencialmente o referido indivíduo ergueu-se no momento imediatamente anterior ao disparo que não aconteceu. 
Em segundo lugar passo a relatar outra situação que se verificou também com o meu pai em época já avançada relativamente à que acabo de relatar. 
Quando exerceu o professorado no Colégio de Marco de Canaveses nós já vivíamos no Porto, na rua Aníbal Cunha, rua paralela à Rua de Cedofeita. O meu pai, no fim de semana viajava de autocarro todas as sextas-feiras para o Porto regressando nos domingos à tarde ao Marco. Trazia nas sextas-feiras uma mala com alguma roupa que usara durante a semana para ser lavada e tratada. 
Numa determinada sexta-feira chega a casa à hora normal, larga a mala, cumprimenta a tropa toda, informa-se dos acontecimentos vividos na sua ausência e desanda para o seu café, existente na nossa rua, muito próxima da nossa casa, para cumprimentar os amigos que por lá faziam paragem e para jogar uma partidinha de damas, jogo em que era um verdadeiro mestre. 
A minha mãe, depois de ele partir, abre a mala e com o que se depara? No interior da mesma mala havia: várias calcinhas de mulher, "soutiens", camisinhas, corpetes, tudo roupa feminina. Ficou furiosa no momento imediato a essa descoberta mas depois acalmou e considerou que poderia ter havido simplesmente uma troca de malas. Então teve um ataque de riso chamando-nos para vermos o que se passava. 
Efectivamente o nosso pai havia trocado a sua mala por outra idêntica à dele pertencente a uma senhora que havido entrado no autocarro também em Marco de Canaveses.
Um dos meus irmãos foi rapidamente chamá-lo ao café e ele não ficou nada satisfeito com o caso, pois teve de interromper a sua partidinha de damas e de se dirigir à Central de Camionagem do Porto, onde estava também já a senhora, legítima proprietária da mala, que ele tinha trazido por engano para fazer a destroca. 




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