sexta-feira, 6 de maio de 2016

A procissão da Nossa Senhora da Ajuda

A minha vida militar na sua totalidade durou sessenta meses, isto é, cinco anos de serviço obrigatório. Este período de tempo foi dividido em duas partes. A primeira, com a duração de vinte meses, iniciei--a como cadete e acabei-a como alferes, entre os meus vinte e um e vinte e dois anos de idade. E a segunda, já com as guerras coloniais em curso, e com trinta e três anos de idade fui de novo chamado às lides militares, regressando somente à vida civil passados quarenta meses. Vivi por isso diversas situações em Portugal e na Guiné, onde fiz uma comissão durante dois anos. Deste último território relato alguns acontecimentos que por lá vivi no meu livro "Memórias da Guiné".
Hoje gostaria de recordar factos ocorridos na minha primeira passagem pela vida militar, quando prestei serviço como aspirante a oficial miliciano.
Nessa qualidade tive de executar algumas missões que me surpreenderam e que na vida fora dos quartéis eram inimagináveis.
No dia a dia do pessoal aquartelado só se pode (ou deve) sair para o exterior depois do toque da ordem. Esse toque, no final das tardes, quer dizer que a ordem de serviço já está pronta e pode ser consultada. Nela é indicado o pessoal nomeado para os serviços do dia seguinte. Convém por isso aos militares de qualquer unidade tomar conhecimento dessas nomeações e assegurarem-se se deles não fazem parte.
Na leitura dessa ordem aconteceu-me por diversas vezes ser surpreendido ao deparar com a minha indigitação para várias acções que jamais me passariam pela ideia.
Há uma lista de oficiais, outra de sargentos e outra de praças. E quando há necessidade de indicar alguém para a realização de determinado acto, são consultadas as listas e é indicado na ordem quem é designado para o efeito.
A mim, quando prestei serviço no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 3 em Paramos-Espinho aconteceram-me algumas nomeações de serviços muito imprevistos que eu, com toda a paciência, procurei cumprir o melhor que pude.
Lembro-me que numa determinada altura a fundação da Nato fazia dez anos e o meu nome saiu na ordem indicado para proferir uma palestra para toda a Unidade Militar sobre a referida organização, que, com os meus verdes vinte e um anos, mal sabia o que era.
A cerimónia previa-se ser grandiosa pois as duas baterias com cerca de trezentos homens estariam formadas na parada devidamente comandadas pelos respectivos capitães, coadjuvados por alferes e sargentos. Os oficiais que não faziam parte da formatura, incluindo o Comandante da Unidade (com a patente de Coronel) e o Segundo Comandante (Tenente-coronel) estariam num grupo à parte bem como estariam noutro grupo os sargentos não incluídos na formatura geral.
Tive de rapidamente me deslocar ao Porto e procurar na Biblioteca Municipal os jornais diários de dez anos antes para colher alguns elementos a fim de poder preparar a referida palestra.
Nunca tinha falado em público, mas com o discurso escrito na mão não me foi difícil fazer a sua leitura numa voz forte e pausada.
De outra vez saiu na ordem que eu representaria o Comandante da Unidade (Gaca 3) na procissão da Senhora da Ajuda de Espinho.
O Comandante, que foi convidado para essa cerimónia, não poderia estar presente e delegou num oficial. Foi-se à lista dos disponíveis e encontrando-me eu à cabeça dos indigitáveis, fui indicado para essa missão. Verdadeiramente preocupado em saber o que teria de fazer, informei-me que teria de me apresentar com a farda número um, com uma faixa vermelha à cinta, incorporando a procissão imediatamente atrás do pálio. A farda número um eu possuí-a. Mas a tal faixa vermelha é que não. Nem eu nem nenhum dos meus colegas. Até que alguém alvitrou que o alferes Magalhães do quadro permanente (oficial de carreira) talvez me pudesse valer.
Procurei o Magalhães e ele prontamente se ofereceu para me engalanar com a sua faixa e de me dar alguns conselhos.
E assim percorri Espinho atrás do pálio com a farda de gala e a faixa vermelha. Foram mais de duas horas que foi quanto demorou a procissão, em que incluo o tempo do sermão que o padre fez junto ao mar na marginal.
Comigo, atrás do pálio, ia o Presidente da Câmara, o Reitor do Liceu, o Juíz, o representante do Governo Civil, um deputado da Assembleia da República... ao todo eram oito individualidades, nas quais me incluo, quatro à frente e quatro atrás. Eu seguia no grupo de trás.
Quando o Presidente da Câmara de Espinho, que ia à frente, se virou para trás com ar interrogativo, como quem diz:
- Quem és tu ? O que estás aqui a fazer ?
Eu fiz-lhe a continência e disse-lhe:
- Estou em representação do senhor Comandante do Grupo de Artilharia.
Ele imediatamente me puxou para o grupo da frente para o lado dele.
Ia todo impante com a minha farda de gala e a faixa vermelha à cinta.
Os meus colegas, assistindo à passagem da procissão, diziam bocas mas eu não me deixei perturbar.
Com esta minha missão algo ganhei. Nos dias seguintes verifiquei quanto subi no conceito das raparigas de Espinho, que mostrando desejos de me conhecer, gabavam a minha prestação na procissão da Senhora da Ajuda.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

O senhor director

No meu tempo como engenheiro técnico da Direcção de Estradas de Viseu, este organismo do estado, que aliás existia em todas as capitais de distrito, era composto por mais de duzentas pessoas nas quais se incluíam cantoneiros, chefes de conservação de estradas, capatazes, fiscais, motoristas, operadores de máquinas, pedreiros, carpinteiros, pintores, mecânicos, electricistas, pessoal técnico e administrativo.
Muitos dos trabalhos de estradas eram executados por administração directa com esse pessoal a que se juntavam assalariados quando necessários. Com essa mão-de-obra se executaram muitos trabalhos rodoviários principalmente pavimentações betuminosas de troços de estradas em "macadame" e até em terra batida.
Entre Oliveira de Frades e Varzielas (nas proximidades do Caramulo) foram betuminados vários quilómetros de estrada por administração directa no meu tempo. Abriram-se pedreiras em Campia, explorou-se pedra, produziu-se brita e gravilha e abasteceram-se os tanques de betume necessários para o efeito na refinaria de Leixões.
O último troço a pavimentar do referido percurso foi realizado por duas brigadas que partindo dos seus extremos se planeou que se encontrassem no final na povoação de Alcofra.
Esse trabalho era orientado pelo chefe de serviços, função que era desempenhada por mim próprio sob a supervisão do director de estradas.
Na altura o director era o engenheiro Correia de Sá, que estava próximo de atingir o limite de idade e havia sido acometido por um AVC, encontrando-se algo diminuído fisicamente. Mesmo assim, como era meu dever, fui-o informando do decorrer dos trabalhos e quando as duas frentes estavam praticamente a encontrar-se em Alcofra convidei-o a ir comigo para assistir ao final da obra. Ele dispôs-se a acompanhar-me no meu carro.
Quando chegámos a Alcofra as duas brigadas estavam muito próximas uma da outra. Visitamos as obras, falamos com os encarregados e aguardamos o final dos trabalhos na referida povoação.
Enquanto isso acontecia apareceu junto de nós o padre da aldeia. Quando nos viu aproximou-se e abraçou com efusão o director de estradas.
Ao que vim a saber eram amigos de longa data. Tinham convivido muito quando o engenheiro Correia de Sá, na sua juventude, tinha andado pelo Caramulo projectando estradas e o padre era coadjuvante do pároco local. O meu director tinha mesmo sido convidado a instalar-se na casa paroquial do Caramulo onde também vivia o actual padre de Alcofra, igualmente muito jovem na altura.
Foi com um agradável prazer que se encontraram e recordaram os seus tempos de juventude. O padre convidou-nos para a sua casa, a fim de nos refrescar-mos um pouco pois nessa tarde de verão estava muito calor. Aceitamos o seu convite e ele recebeu-nos com muita hospitalidade na sua sala, tendo rapidamente posto à nossa disposição: queijo, presunto, chouriço e diversas bebidas frescas incluindo uísque. O senhor director preferiu precisamente esta última bebida de que se serviu por diversas vezes.
Com receio de que a mesma, dado ser muito alcoólica, lhe fizesse mal lembrei-lhe que talvez fosse melhor misturar ao uísque um pouco de água do castelo. Mas ele retorquiu-me que uísque lhe dilatava as veias e que o resultado disso só poderia trazer benefício à sua circulação sanguínea. Por isso continuou conversando e bebendo.
A certa altura levantou-se inseguro da mesa e perguntou ao nosso anfitrião:
- Senhor abade, onde posso mijar ?
O padre indicou-lhe o quarto de banho e ele cambaleando para lá se dirigiu. Quando regressou continuava a cambalear, e vinha com as pernas das calças mijadas.
Perante esta situação tomei a iniciativa de lhe lembrar que eram horas de regressarmos a Viseu. Despedimo-nos do padre. Enfiei-lhe o meu braço e conduzi-o para o automóvel.
A viagem de regresso foi completamente louca. Não pela velocidade, que foi moderada, mas pela conversa que tivemos. Ele, muito eufórico, falou-me dos seus ancestrais, principalmente dos Correias de Sá e Benevides. Deteve-se particularmente em Salvador Correia de Sá, seu antepassado, que foi governador e capitão-geral do Rio de Janeiro e até governador-geral do Brasil. E eu não lhe querendo ficar atrás revelei-lhe que descendia de um bisneto de Egas Moniz, de nome Gonçalo Viegas que por ser muito esbelto foi cognominado de Magro, nome que juntou ao seu e deu origem à família dos Magros de que ainda hoje há três ramos: o de Montalegre, a que pertenço, o de Mondim de Basto e o de Malpica, Castelo Branco.
Foi uma conversa incrível que eu nunca pensei vir a ter com o senhor director. Só foi possível por que ele estava perturbado pelo álcool e porque eu próprio alimentando a sua euforia  resolvi desvendar, num ambiente pouco normal, o segredo que tinha mantido ao longo dos anos acerca das minhas remotas origens.
Viveram-se entre nós, naquela viagem, momentos únicos quando quer um quer o outro desvendaram as ligações aos seus célebres ancestrais de uma maneira apaixonada.
Esse ambiente acabou quando parei o carro junto à porta da casa do senhor director, o ajudei a sair do veículo e de braço dado o encaminhei para a esposa a quem tive de avisar:
- Minha senhora, a viagem correu muito bem. O marido da senhora encontrou um amigo de juventude. Bebeu-se um pouco. O senhor director e eu próprio encontramo-nos algo eufóricos, mais nada do que isso.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

O capitão de artilharia

Depois de ter terminado o curso de oficial miliciano na Escola Prática de Vendas Novas fui colocado no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves sediado em Paramos-Espinho.
Esta unidade militar tinha por função, juntamente com uma Bateria instalada em Leixões, defender a cidade do Porto de um possível ataque aéreo.
O referido Grupo de Artilharia situava-se próximo do Aéreo Clube da Costa Verde mesmo junto ao mar e à Barrinha de Esmoriz. O quartel era desabrigado embora ao seu redor se perfilassem numerosos pinheiros e eucaliptos de elevado porte. Nas noites chuvosas e ventosas de inverno com as fortes bátegas de água e as violentas rajadas de ventos criava-se no quartel um ambiente apocalíptico para que contribuía também o ranger constante dos ramos das árvores. 
Depois de publicada a Ordem de Serviço diária os militares que não tinham quaisquer funções a cumprir podiam abandonar o quartel ficando no mesmo somente aqueles que estavam designados para o cumprimento de qualquer missão como os sentinelas e os oficiais, sargentos e cabos de dia.
No cumprimento do cargo de oficial de prevenção, como aspirante a oficial miliciano, assessorei muitas vezes o oficial de serviço que cabia em regra a um tenente ou capitão. Esse oficial de serviço era o primeiro responsável por tudo quanto acontecesse na unidade militar até ao dia seguinte e o oficial de prevenção o seu imediato. 
Das tarefas que ambos faziam durante a noite uma delas era passar em revista periodicamente as sentinelas espalhadas por diversos pontos dos muros envolventes do quartel, vigiando para que não houvesse qualquer tentativa estranha de intrusão. Essa revista também era feita por sargentos e cabos intervaladamente sendo obrigados os mesmo a dar conhecimento ao oficial de serviço, no final da tarefa, do resultado das suas diligências. 
Com alguns capitães e tenentes, quando escalados para oficias de dia, havia a concordância de se dividir a noite com o oficial de prevenção (aspirante a oficial ou alferes) de modo a permitir que cada um deles descansasse pelo menos três horas, rendendo-se ao fim desse período de tempo. 
Com o capitão Ferreira isso porém não acontecia. Quando se era designado para o assessorar a noite era completamente perdida. 
No inverno, junto ao mar, as noites são assustadoras com o vento a sibilar, as árvores constantemente a baloiçar, os seus ramos a ranger e as chuvadas intermináveis a desabar sobre o terreno. 
Foi numa noite dessas que me aconteceu uma vez ser oficial de prevenção do capitão Ferreira. A nossa "base" era a sala de estar da messe de oficiais. Aí recebíamos os sargentos e cabos de serviço que nos vinham periodicamente dar conhecimento dos resultados das suas revistas e daí partíamos também para a nossa própria ronda aos sentinelas, e aí regressávamos quando terminada. 
Fora esses períodos conversávamos sobre os mais diversos assuntos. Nessa noite, depois de esgotados todos os assuntos, resolvi fazer uma abordagem no sentido de ver se demovia o capitão Ferreira da sua intransigente posição. Falei-lhe que os seus colegas, em geral, dividiam a noite desde as vinte e quatro horas até às seis horas do dia seguinte no sentido de permitir que cada um dos oficiais descansasse pelo menos três horas. Ele, que era muito rigoroso no cumprimento do R.D.M. (Regulamento de Disciplina Militar) disse-me logo que não tinha nada a ver com o que os outros faziam. Com ele o que estava regulamentado era para cumprir integralmente e nessa matéria não transigiria. Ele respeitava os regulamentos e a sua vida militar pautava-se por cumprir e fazer cumprir o R.D.M. 
Depois de o ouvir insinuei que isso não era bem assim. O que fui dizer. O capitão empertigou-se e, sentindo-se injustiçado, quis logo saber o que é que eu estava insinuando. 
Depois de muito instado acabei por lhe dizer que sendo oficial de artilharia e estando regulamentado no R.D.M. (que foi mandado elaborar pelo Conde de Lippe quando foi incumbido da reforma do Exército Português no tempo de D. José I, em 1762, e ainda vigorava) que sendo ele oficial de artilharia e estando regulamentado que os oficiais dessa arma deviam usar pêra e bigode, ele que não usava uma coisa nem outra, se encontrava em incumprimento. 
Soltou uma gargalhada. E acabou por considerar que nesse aspecto eu tinha razão. 
Mas mesmo assim não permitiu que eu fosse descansar para o meu quarto algumas horas.







Os signos do Zodíaco

Quando terminei o meu curso consegui, como já referi, fazer parte de um Plano de Abastecimento de Água ás povoações rurais do Nordeste Transmontano.
Mas antes de iniciar o meu trabalho em Bragança tive de realizar um estágio nos Serviços de Salubridade em Lisboa que durou três meses.
Aí, na capital, conheci um meu colega, também do norte, que estava colocado nos referidos Serviços de Salubridade com quem acamaradei. Esse meu colega, um pouco mais velho do que eu, solteiro era um grande apreciador de música sinfónica o que me levou, acompanhando-o,  a assistir a diversos concertos de música clássica.
Também apreciava ouvir palestras culturais de vária ordem e por essa razão me convidou a frequentar a Sociedade de Geografia e outros centros culturais a fim de assistirmos a diversas conferências.
Era um indivíduo singular, não se deixando envolver nos problemas da vida quotidiana, parecia viver nas nuvens.
A dada altura da minha estadia em Lisboa passei também a acompanhá-lo às refeições numa casa particular que ele frequentava na Alameda D. Afonso Henriques, próximo do Instituto Superior Técnico e do Instituto Nacional de Estatística. Essa casa recebia diversos comensais que tinham por hábito reservar as suas próprias mesas para si e para quem os acompanhasse.  
Esse meu colega tinha por companheiro às refeições um técnico do referido Instituto Nacional de Estatística, organismo que funcionava num edifício muito próximo daquele que frequentávamos, como já referi. Passei também eu a fazer parte da mesa deles. E não tardei de ouvir dos dois constantemente a afirmação que as alterações dos seus temperamentos, as suas boas ou más disposições, os seus dias de sorte ou de azar, os seus amores e desamores eram praticamente idênticos nas mesmas alturas porque eram gémeos.
Eu cheguei a cansar-me de os ouvir sobre as semelhanças que diziam acontecer nos seus comportamentos em determinadas épocas do ano. Até que num certo dia o meu colega surpreendeu-nos com a abertura de uma garrafa de champanhe que tinha trazido. Disse-nos que fazia anos e por isso nos convidava a beber uma taça com ele.
- Anos ?! - interrogou com admiração o técnico de estatística. - Não, não pode fazer anos hoje.
- Essa agora,  retorquiu-lhe o meu colega. Nasci exactamente nesta data, por isso faço hoje anos.
- Então se faz hoje anos, não é gémeo - retorquiu-lhe o outro.
- Não sou gémeo ? Essa agora ! Isso é que sou, porque tenho um irmão que nasceu na mesma altura que eu.
Perante esta troca de palavras entre os dois não pude reprimir a enorme vontade de me rir e soltei uma estrondosa gargalhada.
Afinal um era do signo dos gémeos enquanto o outro era gémeo porque tinha um irmão nascido na mesma altura que ele.
Nunca mais esqueci que sendo de signos do Zodíaco diferentes como pôde ser a vida dos dois tão igualmente influenciada pela trajectória do sol, das constelações e dos astros.
Desde essa altura nunca mais acreditei na infabilidade dos signos do Zodíaco.

terça-feira, 3 de maio de 2016

O Santo Apolinário

Em Urros, aldeia serrana do concelho de Torre de Moncorvo, houve em 1966 uma perturbação da ordem pública porque alguns ânimos exaltados denunciaram que a imagem de Santo Apolinário, existente na capela do referido santo, teria sido trocada por outra de muito menos valor.
Foi posta em causa, com essa atitude popular, a Comissão de Festas do Santo Apolinário de Urros que acusaram de ter vendido a antiga imagem do santo, considerada valiosa, substituindo-a por outra sem valor, quando foi mandada restaurar a primeira.
Para muitos a imagem, depois de restaurada, não tinha a expressão a que as gentes da aldeia se haviam habituado e o olhar do santo era diferente. A cadeira onde se sentava não era a mesma e a mitra que usava também não, além do cordão da cruz ser mais cumprido. Mas o que mais desagradava ao povo era a fisionomia do santo que era outra.
Desta contestação surgiu a suspeita de que o Presidente da Comissão de Festas professor Jozino Amado teria vendido a verdadeira imagem e a fizera substituir por uma semelhante, mas sem qualquer valor.
E esse assunto tornou-se na conversa habitual naquele fim de verão de 1966 dos habitantes de Urros, uma aldeia muito antiga que recebeu foral de D. Afonso Henriques e que noutros tempos chegou a ser mesmo sede de concelho.
A sua população tem sido muito devota do Santo Apolinário desde tempos imemoriais.
Com este nome há dois santos: um foi bispo de Hierápoles na Frígia e outro que foi bispo de Ravena, na Itália.
Desconheço qual dos dois está representado na Capela de Urros, capela que dispõe de um retábulo-mor, retábulos laterais e tecto artisticamente notáveis no parecer de peritos entendidos na matéria.
A modificação da fisionomia da imagem do santo era o que mais entristecia o povo. No princípio algumas (poucas) pessoas timidamente murmuravam que aquele santo não era o deles. Depois essa desconfiança ganhou uma adesão cada vez maior. E foi de tal maneira grande que muitos se revoltaram com a situação originada pelas suspeitas, bradando que era uma vergonha o que estava a acontecer, que todos haviam sido enganados pelo professor Amado. O professor foi insultado e pela calada da noite até lhe apedrejaram a porta da casa.
O professor tinha, ao longo de uma carreira de algumas dezenas de anos, ensinado as primeiras letras a várias gerações de crianças de Urros. Tinha sempre sido muito considerado pelos seus antigos alunos e restantes concidadãos como um homem justo e honesto.
Mas depois da restauração do santo tudo se alterou. Agora, de noite, alguns passando pela sua rua, pouco iluminada insultavam-no em altos berros:
- Ladrão que nos enganaste a todos. Vendeste a imagem do santo, gatuno !
Perante tal situação a Comissão de Festas do Santo Apolinário de Urros, intentou um processo judicial contra várias pessoas, acusando-as de haverem lançado criminosa e falsa denuncia de venda, pela mesma comissão, da imagem do santo na altura em que fora a restaurar.
Em vias disso o juiz do círculo judicial de Bragança mandou fazer um exame à imagem do Santo Apolinário existente na Capela de Urros por dois peritos de Arte Sacra.
Os mesmo peritos elaboraram um relatório onde consta que sobre a identidade da escultura não podem ser formuladas quaisquer dúvidas. Embora na restauração da imagem tivessem sido introduzidas algumas modificações, o referido exame demonstrou que não houve qualquer troca de imagens sendo por isso a originária aquela que, depois de restaurada se encontra na capela do santo.
Os referidos peritos qualificados afirmam ainda no seu relatório que a imagem revela moleza de formas, no tratamento das feições, mãos, panejamentos e outros pormenores, não tendo (a imagem) grande interesse plástico.
"É uma obra de imaginária de pouco valor que não dignifica o conjunto, verdadeiramente notável, constituído pelo retábulo-mor, retábulos laterais e tecto da capela a que a imagem pertence" refere-se no mesmo relatório.
Depois disto os ânimos exaltados de muitos habitantes de Urros foram acalmando ao longo do tempo. A serenidade e a paz acabaram por regressar a Urros. Mas em algumas pessoas mais idosas ainda permanecem no fundo algumas dúvidas quando o santo as olha de uma maneira diferente daquela a que sempre se habituaram. E em voz baixa continuam a murmurar:
- Hum, este não é o nosso Santo Apolinário...




Por montes e vales montado num burro

Após ter terminado o meu curso de engenharia civil procurei emprego. Passados poucos meses consegui ser integrado num grupo de trabalho que tinha por missão desenvolver um plano governamental tendo em vista dotar com abastecimento de água potável as povoações com mais de cem habitantes do nordeste transmontano.
Depois de estagiar nos Serviços de Salubridade, em Lisboa, e nos Serviços de Hidrologia no Porto fui colocado em Bragança com a missão de definir uma origem para o futuro abastecimento de água potável a diversas aldeias do referido distrito.
Isto aconteceu nos anos de 1957 e 1958, há portanto mais de meio século, quando eu tinha vinte e um-vinte e dois anos de idade. Nessa época havia um atraso muito grande nas zonas rurais sobre muitos aspectos nos quais se incluíam os deficientes abastecimentos de água às populações que eram em muitos casos levados a efeito através de fontes de chafurdo e à não existência de saneamento básico e de vias de comunicação rodoviárias.
Esse atraso era particularmente acentuado no interior do país, principalmente na região de Bragança.
Nessa minha actividade visitei mais de seiscentas povoações servindo-me em muitos casos de caminhos impraticáveis à locomoção automóvel.
Nas minhas deslocações utilizei muitas vezes o cavalo, o burro e em alguns casos as minhas próprias pernas. Fiz por isso longas caminhadas pelo planalto transmontano e muitas viagens montado em cavalos ou burros.
Tendo vivido a minha juventude na cidade do Porto nunca tinha montado um cavalo ou um burro até aos meus vinte e um anos de idade. Quando o fiz pela primeira vez em Mogadouro não me senti nada seguro em cima de um cavalo, pois encontrei-me demasiado acima do solo prevendo que, a verificar-se a minha queda daquela altura, não ficaria fisicamente bem tratado. Essa insegurança não me acontecia com os burros. Sendo mais baixos que os cavalos, quando os montava quase que chegava com os pés ao chão, pelo que me sentia muito mais à vontade em cima deles.
Por isso, em muitas das minhas deslocações, optava por ser transportado por burros quando era impraticável o acesso automóvel.
Era sempre acompanhado nessas minhas jornadas por um fiscal da câmara municipal da área que, montado noutro burro, levava consigo várias medidas (meio litro, um litro, dois litros...) medidas que eram utilizadas para calcular os caudais das nascentes inspeccionadas. Enquanto o fiscal assegurava que a água corresse em bica directamente para uma das medidas eu, com a ajuda de um cronómetro, registava o tempo que demorava a enchê-la.
Desse valor fazia a respectiva anotação, registava nas cartas topográficas a localização das nascentes e calculava o caudal que as mesmas garantiriam no seu estado natural em vinte e quatro horas.
Dessa vida, ao ar livre, percorrendo  montes e vales, tenho gratas recordações. Era sempre muito bem recebido pelas populações que me mimoseavam com o que melhor possuíam nas suas dispensas.
Mas há uma dessas viagens que, quando a recordo, sempre o meu rosto se abre num largo sorriso.
Certa vez, depois de vestir a minha indumentária própria para essas andanças, composta por botas cardadas, calças de cotim, camiseta e chapéu de aba larga, montei no meu jerico em Alfândega da Fé para me deslocar a Vale Pereiro. Acompanhava-me o senhor António, fiscal da Câmara de Alfândega da Fé, igualmente montado num burro no qual transportava as diversas vasilhas necessárias para medir os caudais das nascentes. Depois de alguns quilómetros percorridos passámos por um pequeno aglomerado que não fazia parte do nosso programa por ter muito pouca população.
Quando o acabava-mos de atravessar fomos interpelados por um homem que em altos berros chamava por nós.
- Eh ! Venham cá ! Venham cá !
Tivemos que providenciar para que os burros interrompessem o seu andamento e como não percebíamos o que o homem queria o fiscal António, obrigando o seu burro a inverter a marcha, foi ao seu encontro para procurar saber o que é que ele pretendia.
Passados breves momentos o meu companheiro de jornada troteou até mim com um larga sorriso no rosto informando-me que o indivíduo que nos chamava queria que lhe consertássemos (deitássemos uns pingos de solda) numas suas panelas que tinha rotas pois julgava que nós éramos caldeireiros.



segunda-feira, 2 de maio de 2016

O Senhor Barão

O meu tio Zeferino era Barão. O pai dele fez fortuna no Brasil. Mas não fez somente fortuna, também socialmente se elevou de tal forma que chegou a ser cônsul de Portugal em Santos.
Regressado a Portugal construiu em Cete, na proximidade de Paredes, um palacete cercado por uma apreciável área de terreno que foi ocupada com anexos, jardins e terreno agrícola.
Na referida povoação de Cete patrocinou diversas obras: como a abertura de novos arruamentos, a construção do quartel de bombeiros voluntários e a reconstrução da igreja matriz.
Pelos serviços prestados ao país em Santos, no Brasil e pela sua contribuição na melhoria das infraestruturas de Cete o Rei D. Carlos I concedeu-lhe o título de Barão por três gerações.
Por isso o seu filho Zeferino Lourenço Martins, casado com uma irmã de minha avó paterna, também beneficiou do referido título de nobreza.
Eu conheci bem esse meu tio por afinidade. Era um homem muito simples e muito comunicativo. Não me lembro, no entanto, de o ver ocupado alguma vez em qualquer actividade.
Vivia, ao que julgo saber, absolutamente dos rendimentos que o pai lhe havia transmitido. Dos rendimentos de Cete e do Brasil e dos "papeis" como ele dizia e que eu, mais tarde, percebi tratar-se de acções da bolsa que tinha em diversas empresas nacionais.
Era muito dedicado à família acompanhando os seus próprios filhos e os seus sobrinhos na sua vida escolar e até extra-escolar.
Lembro-me que, aquando do meu exame do segundo ano (hoje sexta classe) de ensino secundário, me acompanhou por diversas vezes ao Liceu D. Manuel II (hoje Rodrigues de Freitas) no Porto.
Nesse tempo só dispensava da provas orais quem obtivesse dezasseis valores nas provas escritas. Não tendo obtido essa nota fui, por isso, submetido a provas orais.
O senhor Barão, como algumas pessoas ainda o tratavam, esteve presente nas minhas provas orais de matemática e de ciências naturais.
Na primeira das referidas disciplinas portei-me muito bem, pois estava preparado e tinha pelos números alguma inclinação. Mas nas ciências naturais já não estava tão seguro. Nessa matéria tinha até algumas dificuldades.
Naquele tempo os assistentes aos exames orais só podiam entrar e sair da sala de exames nos finais das provas de cada examinando ou no início das mesmas.
Quando estava a ser questionado em ciências naturais e depois de ter dado algumas respostas pouco correctas a questões que me foram apresentadas pelo examinador verifiquei que o meu tio Zeferino, infringindo as regras, saía pedindo desculpa ao júri.
A minha prova, depois disso, continuou e até consegui concluí-la com algumas respostas acertadas.
Quando acabei o exame e sai da sala preocupei-me em saber o que se havia passado com o meu tio Zeferino. Encontrei-o no hall do liceu verdadeiramente zangado.
- Parece impossível, disse ele. Como é que foste capaz de dizer tanta asneira em ciências naturais depois de uma boa prova de matemática. Enervaste-me de uma maneira tal que tive de sair da sala de exame e o pior é que não consegui segurar-me e estou todo mijado.




domingo, 1 de maio de 2016

O senhor professor

O meu pai sendo o chefe de uma família numerosa e com dificuldades económicas evidentes para alimentar, vestir, calçar e educar os seus oito filhos, aparentemente estava sempre disposto para uma boa brincadeira e uma estridente gargalhada.
Os problemas do dia-a-dia esquecia-os completamente perante uma boa mesa de que teria de fazer parte vinho de qualidade e  gente para dialogar. 
Também adorava a presença de jovens raparigas, sobretudo se o peito delas era volumoso, cheio de patriotismo como ele dizia. 
Foi um homem que viveu sempre fora da realidade. Nunca admitiu viver em dificuldade, mesmo quando era assediado pelos fornecedores da nossa casa reclamando o pagamento das nossas contas.
Quando algum de nós se lamentava de qualquer espécie de carência sempre retorquia que melhores dias haviam de vir e que ele era afinal um proprietário, com casa e terrenos na praia de Francelos, além de descender de famílias fidalgas.
Era diplomado em engenharia. Tinha cursado a Escola Superior Politécnica do Porto, anteriormente à criação da Universidade na referida cidade. Nesse tempo no Porto o ensino superior era ministrado nas grandes escolas, tais como: A Escola Médica-Cirúrgica, A Escola Superior de Belas Artes, A Escola Politécnica e outras.
A escola que frequentou estava instalada no edifício ainda hoje bem conservado existente entre o Jardim da Cordoaria e a Praça dos Leões, conhecido actualmente pela Universidade. Ali eram ministradas as aulas teóricas dos futuros engenheiros, mas as aulas práticas e as oficinas tinham lugar em pavilhões no interior do espaço murado que circundava o Palácio de Cristal.
Depois de formado trabalhou algum tempo nos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento da cidade do Porto e no Ministério das Obras Públicas acabando a sua vida activa como professor de matemática em estabelecimentos particulares de ensino uma vez que era detentor de um diploma que lhe permitia ministrar a referida disciplina até ao antigo sétimo ano dos liceus (hoje décimo primeiro ano escolar). 
Era por isso conhecido pelo senhor professor, na última parte da sua vida. 
O meu pai era uma pessoa convivencial que fazia amigos com facilidade, desprendido no que se refere ao dinheiro que para ele não servia para outra coisa que não fosse para gastar.  
Era muito distraído e por via dessa particularidade em várias ocasiões lhe aconteceram situações caricatas. Duas delas fazem me sempre sorrir quando as recordo. 
A que vou relatar em primeiro lugar foi-me contada por ele e passou-se na Praia de Francelos na sua juventude. O meu  pai frequentava muito esta praia porque os seus progenitores (os meus avós) construíram lá três pequenas moradias destinadas uma a cada um dos seus três filhos tendo até vivido numa delas alguns anos.
Aí em Francelos, no tempo da caça, o meu pai percorria longos quilómetros pelas dunas existentes junto ao mar com uma espingarda de caça belga (como ele acentuava sempre quando se referia à sua caçadeira) procurando aves marinhas, preferencialmente patos bravos a fim de os abater.
Uma vez avistou por cima de uma duna o que lhe pareceu ser uma grande e volumosa ave. Aproximou-se dela o mais que pode, com todas as precauções, rastejando na areia. Quando lhe pareceu que a poderia alvejar com sucesso aprontou-se para disparar. Nesse preciso momento o que se lhe deparou não foi, entretanto, um pato real como imaginava mas um homem com as calças na mão puxando-as para cima e apertando-as com um cinto, depois de ter feito ao vento as suas necessidades. Homem esse que usava na sua cabeça como cobertura um enorme chapéu de aba larga. O meu pai ficou suspenso e boquiaberto. O referido chapéu, única peça da indumentária do homem que vira por cima da duna tinha-lhe parecido um soberbo pato real. Providencialmente o referido indivíduo ergueu-se no momento imediatamente anterior ao disparo que não aconteceu. 
Em segundo lugar passo a relatar outra situação que se verificou também com o meu pai em época já avançada relativamente à que acabo de relatar. 
Quando exerceu o professorado no Colégio de Marco de Canaveses nós já vivíamos no Porto, na rua Aníbal Cunha, rua paralela à Rua de Cedofeita. O meu pai, no fim de semana viajava de autocarro todas as sextas-feiras para o Porto regressando nos domingos à tarde ao Marco. Trazia nas sextas-feiras uma mala com alguma roupa que usara durante a semana para ser lavada e tratada. 
Numa determinada sexta-feira chega a casa à hora normal, larga a mala, cumprimenta a tropa toda, informa-se dos acontecimentos vividos na sua ausência e desanda para o seu café, existente na nossa rua, muito próxima da nossa casa, para cumprimentar os amigos que por lá faziam paragem e para jogar uma partidinha de damas, jogo em que era um verdadeiro mestre. 
A minha mãe, depois de ele partir, abre a mala e com o que se depara? No interior da mesma mala havia: várias calcinhas de mulher, "soutiens", camisinhas, corpetes, tudo roupa feminina. Ficou furiosa no momento imediato a essa descoberta mas depois acalmou e considerou que poderia ter havido simplesmente uma troca de malas. Então teve um ataque de riso chamando-nos para vermos o que se passava. 
Efectivamente o nosso pai havia trocado a sua mala por outra idêntica à dele pertencente a uma senhora que havido entrado no autocarro também em Marco de Canaveses.
Um dos meus irmãos foi rapidamente chamá-lo ao café e ele não ficou nada satisfeito com o caso, pois teve de interromper a sua partidinha de damas e de se dirigir à Central de Camionagem do Porto, onde estava também já a senhora, legítima proprietária da mala, que ele tinha trazido por engano para fazer a destroca.