No meu tempo como engenheiro técnico da Direcção de Estradas de Viseu, este organismo do estado, que aliás existia em todas as capitais de distrito, era composto por mais de duzentas pessoas nas quais se incluíam cantoneiros, chefes de conservação de estradas, capatazes, fiscais, motoristas, operadores de máquinas, pedreiros, carpinteiros, pintores, mecânicos, electricistas, pessoal técnico e administrativo.
Muitos dos trabalhos de estradas eram executados por administração directa com esse pessoal a que se juntavam assalariados quando necessários. Com essa mão-de-obra se executaram muitos trabalhos rodoviários principalmente pavimentações betuminosas de troços de estradas em "macadame" e até em terra batida.
Entre Oliveira de Frades e Varzielas (nas proximidades do Caramulo) foram betuminados vários quilómetros de estrada por administração directa no meu tempo. Abriram-se pedreiras em Campia, explorou-se pedra, produziu-se brita e gravilha e abasteceram-se os tanques de betume necessários para o efeito na refinaria de Leixões.
O último troço a pavimentar do referido percurso foi realizado por duas brigadas que partindo dos seus extremos se planeou que se encontrassem no final na povoação de Alcofra.
Esse trabalho era orientado pelo chefe de serviços, função que era desempenhada por mim próprio sob a supervisão do director de estradas.
Na altura o director era o engenheiro Correia de Sá, que estava próximo de atingir o limite de idade e havia sido acometido por um AVC, encontrando-se algo diminuído fisicamente. Mesmo assim, como era meu dever, fui-o informando do decorrer dos trabalhos e quando as duas frentes estavam praticamente a encontrar-se em Alcofra convidei-o a ir comigo para assistir ao final da obra. Ele dispôs-se a acompanhar-me no meu carro.
Quando chegámos a Alcofra as duas brigadas estavam muito próximas uma da outra. Visitamos as obras, falamos com os encarregados e aguardamos o final dos trabalhos na referida povoação.
Enquanto isso acontecia apareceu junto de nós o padre da aldeia. Quando nos viu aproximou-se e abraçou com efusão o director de estradas.
Ao que vim a saber eram amigos de longa data. Tinham convivido muito quando o engenheiro Correia de Sá, na sua juventude, tinha andado pelo Caramulo projectando estradas e o padre era coadjuvante do pároco local. O meu director tinha mesmo sido convidado a instalar-se na casa paroquial do Caramulo onde também vivia o actual padre de Alcofra, igualmente muito jovem na altura.
Foi com um agradável prazer que se encontraram e recordaram os seus tempos de juventude. O padre convidou-nos para a sua casa, a fim de nos refrescar-mos um pouco pois nessa tarde de verão estava muito calor. Aceitamos o seu convite e ele recebeu-nos com muita hospitalidade na sua sala, tendo rapidamente posto à nossa disposição: queijo, presunto, chouriço e diversas bebidas frescas incluindo uísque. O senhor director preferiu precisamente esta última bebida de que se serviu por diversas vezes.
Com receio de que a mesma, dado ser muito alcoólica, lhe fizesse mal lembrei-lhe que talvez fosse melhor misturar ao uísque um pouco de água do castelo. Mas ele retorquiu-me que uísque lhe dilatava as veias e que o resultado disso só poderia trazer benefício à sua circulação sanguínea. Por isso continuou conversando e bebendo.
A certa altura levantou-se inseguro da mesa e perguntou ao nosso anfitrião:
- Senhor abade, onde posso mijar ?
O padre indicou-lhe o quarto de banho e ele cambaleando para lá se dirigiu. Quando regressou continuava a cambalear, e vinha com as pernas das calças mijadas.
Perante esta situação tomei a iniciativa de lhe lembrar que eram horas de regressarmos a Viseu. Despedimo-nos do padre. Enfiei-lhe o meu braço e conduzi-o para o automóvel.
A viagem de regresso foi completamente louca. Não pela velocidade, que foi moderada, mas pela conversa que tivemos. Ele, muito eufórico, falou-me dos seus ancestrais, principalmente dos Correias de Sá e Benevides. Deteve-se particularmente em Salvador Correia de Sá, seu antepassado, que foi governador e capitão-geral do Rio de Janeiro e até governador-geral do Brasil. E eu não lhe querendo ficar atrás revelei-lhe que descendia de um bisneto de Egas Moniz, de nome Gonçalo Viegas que por ser muito esbelto foi cognominado de Magro, nome que juntou ao seu e deu origem à família dos Magros de que ainda hoje há três ramos: o de Montalegre, a que pertenço, o de Mondim de Basto e o de Malpica, Castelo Branco.
Foi uma conversa incrível que eu nunca pensei vir a ter com o senhor director. Só foi possível por que ele estava perturbado pelo álcool e porque eu próprio alimentando a sua euforia resolvi desvendar, num ambiente pouco normal, o segredo que tinha mantido ao longo dos anos acerca das minhas remotas origens.
Viveram-se entre nós, naquela viagem, momentos únicos quando quer um quer o outro desvendaram as ligações aos seus célebres ancestrais de uma maneira apaixonada.
Esse ambiente acabou quando parei o carro junto à porta da casa do senhor director, o ajudei a sair do veículo e de braço dado o encaminhei para a esposa a quem tive de avisar:
- Minha senhora, a viagem correu muito bem. O marido da senhora encontrou um amigo de juventude. Bebeu-se um pouco. O senhor director e eu próprio encontramo-nos algo eufóricos, mais nada do que isso.
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