sexta-feira, 6 de maio de 2016

A procissão da Nossa Senhora da Ajuda

A minha vida militar na sua totalidade durou sessenta meses, isto é, cinco anos de serviço obrigatório. Este período de tempo foi dividido em duas partes. A primeira, com a duração de vinte meses, iniciei--a como cadete e acabei-a como alferes, entre os meus vinte e um e vinte e dois anos de idade. E a segunda, já com as guerras coloniais em curso, e com trinta e três anos de idade fui de novo chamado às lides militares, regressando somente à vida civil passados quarenta meses. Vivi por isso diversas situações em Portugal e na Guiné, onde fiz uma comissão durante dois anos. Deste último território relato alguns acontecimentos que por lá vivi no meu livro "Memórias da Guiné".
Hoje gostaria de recordar factos ocorridos na minha primeira passagem pela vida militar, quando prestei serviço como aspirante a oficial miliciano.
Nessa qualidade tive de executar algumas missões que me surpreenderam e que na vida fora dos quartéis eram inimagináveis.
No dia a dia do pessoal aquartelado só se pode (ou deve) sair para o exterior depois do toque da ordem. Esse toque, no final das tardes, quer dizer que a ordem de serviço já está pronta e pode ser consultada. Nela é indicado o pessoal nomeado para os serviços do dia seguinte. Convém por isso aos militares de qualquer unidade tomar conhecimento dessas nomeações e assegurarem-se se deles não fazem parte.
Na leitura dessa ordem aconteceu-me por diversas vezes ser surpreendido ao deparar com a minha indigitação para várias acções que jamais me passariam pela ideia.
Há uma lista de oficiais, outra de sargentos e outra de praças. E quando há necessidade de indicar alguém para a realização de determinado acto, são consultadas as listas e é indicado na ordem quem é designado para o efeito.
A mim, quando prestei serviço no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 3 em Paramos-Espinho aconteceram-me algumas nomeações de serviços muito imprevistos que eu, com toda a paciência, procurei cumprir o melhor que pude.
Lembro-me que numa determinada altura a fundação da Nato fazia dez anos e o meu nome saiu na ordem indicado para proferir uma palestra para toda a Unidade Militar sobre a referida organização, que, com os meus verdes vinte e um anos, mal sabia o que era.
A cerimónia previa-se ser grandiosa pois as duas baterias com cerca de trezentos homens estariam formadas na parada devidamente comandadas pelos respectivos capitães, coadjuvados por alferes e sargentos. Os oficiais que não faziam parte da formatura, incluindo o Comandante da Unidade (com a patente de Coronel) e o Segundo Comandante (Tenente-coronel) estariam num grupo à parte bem como estariam noutro grupo os sargentos não incluídos na formatura geral.
Tive de rapidamente me deslocar ao Porto e procurar na Biblioteca Municipal os jornais diários de dez anos antes para colher alguns elementos a fim de poder preparar a referida palestra.
Nunca tinha falado em público, mas com o discurso escrito na mão não me foi difícil fazer a sua leitura numa voz forte e pausada.
De outra vez saiu na ordem que eu representaria o Comandante da Unidade (Gaca 3) na procissão da Senhora da Ajuda de Espinho.
O Comandante, que foi convidado para essa cerimónia, não poderia estar presente e delegou num oficial. Foi-se à lista dos disponíveis e encontrando-me eu à cabeça dos indigitáveis, fui indicado para essa missão. Verdadeiramente preocupado em saber o que teria de fazer, informei-me que teria de me apresentar com a farda número um, com uma faixa vermelha à cinta, incorporando a procissão imediatamente atrás do pálio. A farda número um eu possuí-a. Mas a tal faixa vermelha é que não. Nem eu nem nenhum dos meus colegas. Até que alguém alvitrou que o alferes Magalhães do quadro permanente (oficial de carreira) talvez me pudesse valer.
Procurei o Magalhães e ele prontamente se ofereceu para me engalanar com a sua faixa e de me dar alguns conselhos.
E assim percorri Espinho atrás do pálio com a farda de gala e a faixa vermelha. Foram mais de duas horas que foi quanto demorou a procissão, em que incluo o tempo do sermão que o padre fez junto ao mar na marginal.
Comigo, atrás do pálio, ia o Presidente da Câmara, o Reitor do Liceu, o Juíz, o representante do Governo Civil, um deputado da Assembleia da República... ao todo eram oito individualidades, nas quais me incluo, quatro à frente e quatro atrás. Eu seguia no grupo de trás.
Quando o Presidente da Câmara de Espinho, que ia à frente, se virou para trás com ar interrogativo, como quem diz:
- Quem és tu ? O que estás aqui a fazer ?
Eu fiz-lhe a continência e disse-lhe:
- Estou em representação do senhor Comandante do Grupo de Artilharia.
Ele imediatamente me puxou para o grupo da frente para o lado dele.
Ia todo impante com a minha farda de gala e a faixa vermelha à cinta.
Os meus colegas, assistindo à passagem da procissão, diziam bocas mas eu não me deixei perturbar.
Com esta minha missão algo ganhei. Nos dias seguintes verifiquei quanto subi no conceito das raparigas de Espinho, que mostrando desejos de me conhecer, gabavam a minha prestação na procissão da Senhora da Ajuda.

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