domingo, 10 de julho de 2016

A minha casa em Bissau

Em Abril de 1970 fui mobilizado para a Guiné, onde decorria uma sangrenta guerra colonial, sendo colocado no Batalhão de Engenharia 447 em Bissau.
Pouco tempo depois de ter chegado à referida colónia, consegui alugar uma pequena moradia na Avenida Arnaldo Schultz, muito próxima do quartel da polícia.
Era uma pequena vivenda mobilada e equipada com uma sala de estar, outra de jantar, dois quartos, cozinha e um quarto de banho. Mas tinha à sua volta um pequeno jardim no qual havia duas bananeiras, uma papaieira e uma belíssima acácia rubra.
Essa moradia permitiu-me alojar a minha também pequena família, composta por mim próprio, pela Lena (minha mulher) e o Fernando Manuel meu único filho, na altura com nove anos de idade que chegariam a Bissau a 24 de Junho de 1970, depois de cumprido o ano escolar.
Dada a minha posição na hierarquia militar tive direito a um impedido. Foi-me atribuído para executar essas funções um soldado negro, que anteriormente havia sido "terrorista", de nome Moba de religião muçulmana. Tinha já três mulheres quando entrou ao meu serviço e vários filhos. Andava sempre com dificuldades financeiras. Muitos dias antes do pagamento do pré pedia-me adiantamentos quase todos os meses.
Dizia-me que não tinha dinheiro para comprar a "vianda" para os meninos. E eu adiantava-lhe o pré. A sua religião proibia-o de beber vinho. Mas para ele vinho somente era o tinto. Dessa forma iludia as suas próprias convicções religiosas, pois dizia-me que o vinho branco era água de Lisboa e como tal não lhe estava proibido bebê-la.
Quando a sêde lhe apertava pedia-me:
- Capitão, dá-me um copo de água de Lisboa. E eu, em regra satisfazia-lhe o pedido.
Um dia pediu-me férias.
- Férias nesta altura, Moba ?
- Sim, Capitão. Preciso de alguns dias de férias para casar.
- Outra vez ?! - admirei-me eu. Já tens três mulheres e não sei quantos filhos e queres outra mulher ?
- Preciso, Capitão. Vou casar com uma "bajuda"(1). Quando eu e as minhas outras mulheres envelhecermos ela tratará de nós.
Perante esta explicação não pude deixar de dar férias ao meu impedido Moba.
Também tivemos ao nosso serviço uma lavadeira negra de nome Inácia. Durante o tempo que nos serviu o marido dela adoeceu gravemente e acabou por morrer.
Ficámos tristes com o infausto acontecimento uma vez que tinha-mos muita estima pela Inácia, que era muito boa pessoa.
Sempre que me irritava com alguma traquinice do meu filho e lhe ralhava ela punha-se imediatamente à minha frente e rogava-me:
- Capitão, não batas ao menino. Capitão, por favor.
Por isso quisemos saber da futura situação da Inácia e do seu pequeno filho. Ela informou-nos, então, que tudo estava assegurado. Passaria a pertencer a um seu cunhado e o "tiozinho" passaria a ter a responsabilidade de criar o miúdo.
Era uma criatura paciente, humilde e meiga a Inácia. Gostava muito do meu filho. Dizia-me, a respeito dele, muitas vezes:
- Menino tem esperto na cabeça.
Tivemos também uma "bajuda" para a limpeza. Era uma rapariga muito nova que, findo o trabalho, se despia completamente nas traseiras da nossa casa e se lavava com a mangueira do jardim.
Encontrei o meu filho algumas vezes, por detrás das persianas, gozando o espectáculo que a "bajuda" oferecia sem o mínimo pudor.
Também tivemos um pequeno cão, o Perna Longa, e um periquito. Uns tempos antes de regressar-mos a Portugal demos o cão. O Moba tratou de o levar para o novo dono que habitava longe de nós. O animal procurou e conseguiu voltar à nossa casa, orientado-se não sei como por entre aquele emaranhado de bairros de palhotas que circundavam a cidade.
Só depois de ser preso pelo novo dono é que deixou de nos aparecer.
Quanto ao periquito ofereci-o ao Major (é hoje General) Carlos Azeredo. Ele tinha tido um periquito que morreu. O Major falou-me do seu passamento com alguma tristeza. Perto de regressarmos, para aliviar a tristeza do major, ofereci-lhe o periquito.

1 Bajudas: era o nome dado às jovens menstruadas.

Nota: Esta história faz parte do livro "Memórias da Guiné" do mesmo autor, de onde foi transcrita.

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