segunda-feira, 18 de julho de 2016

A passagem de ano de 1970 para 1971

A cidade de Bissau no tempo em que lá cumpri uma comissão obrigatória entre 1970 e 1972 regurgitava de movimento nas ruas, onde era claramente notada a população branca.
Dado o clima de guerra existente, todos os dias recordado pelas evacuações de feridos e mortos vindos do interior do território e por vezes porque era perfeitamente audível em Bissau o bombardeamento das artilharias que, com o rebentamento das suas granadas, provocavam o retinir dos vidros das janelas, as pessoas viviam com um sentimento de insegurança.
Sentimento que se tornou maior quando houve uma tentativa por parte das forças do PAIGC de alvejar com mísseis os depósitos da Sacor, em Bissau. Não acertaram no alvo, mas o sibilar dos mísseis foi por todos ouvido ao passarem pelos céus da cidade.
Pela insegurança e pelo isolamento em que se vivia, relativamente a familiares e amigos, os portugueses sentiam uma grande necessidade de convívio, de estabelecer laços humanos entre eles.
No meu caso pessoal frequentava com a minha família, nas noites de quarta-feira o batalhão de engenharia onde se realizava, semanalmente, um jantar convívio. Aos sábados, geralmente, deslocavamo-nos até à piscina do Clube de Oficiais e em outros dias da semana, por vezes, havia festas de aniversário ou simples recepções em casas de famílias das nossas relações.
Uma das casas que frequentávamos muito era a do engenheiro Lourenço Pinto, chefe dos Serviços de Obras Públicas da Guiné, casado com a Etelvina Moritz, ambos naturais da Torre de Moncorvo em Trás-os-Montes, muito amigos da minha mulher.
Em nossa casa organizava-mos somente algumas pequenas festas, sobretudo em ocasião de aniversários, dado que não tínhamos cozinheira sendo a nossa alimentação garantida pela Messe de Oficiais.
A casa do engenheiro Lourenço Pinto era frequentada praticamente por todas as pessoas com responsabilidades na vida administrativa da Guiné. Lá encontrávamos o Secretário-Geral (segunda figura do Governo do território ) e diversos chefes de serviço (o mais alto posto da hierarquia do funcionalismo público). Mas também lá encontrávamos pessoal do Serviço de Obras Públicas de várias categorias, incluindo a de capataz, bem como comerciantes e outros elementos da população civil.
Com a família do engenheiro Lourenço Pinto também passávamos as festas de Natal e de Ano Novo. O salão de festas da Associação Comercial de Bissau foi o palco da nossa passagem de ano de 1970 para 1971. Fomos convidados para essa passagem de ano por um comerciante de Bissau que fazia parte da direcção da referida associação.
A festa, conforme o referido comerciante teve a amabilidade de me explicar, seria abrilhantada toda a noite por um conjunto cabo verdiano conhecido mas havia um problema: não existia serviço de "buffet".
Os participantes teriam de levar de suas próprias casas algumas bebidas e alimentos que depois se exporiam e de onde cada qual se serviria.
Aceitei o amável convite e, com a minha mulher, começámos a pensar na nossa contribuição para a ceia de passagem de ano. Conversei sobre o assunto com o alferes Santos que comigo colaborava nos Serviços de Reordenamentos Populacionais. Devido à sua formação em agronomia, ele era o responsável também pela agro-pecuária do batalhão de engenharia.
Quando lhe falei no meu problema, despachado como era, disse-me logo:
- Não se preocupe Capitão. Eu resolvo-lhe isso.
Nem eu nem a minha mulher nos preocupámos mais com o caso. No dia 30 de Dezembro lembrei-lhe o que me tinha garantido. Respondeu-me que não estava esquecido. Que às oito horas da noite do dia seguinte mandaria entregar, da minha parte, na Associação Comercial dois patos assados com arroz. Não falhou. De resto era próprio da sua maneira de ser respeitar escrupulosamente o que se combinava com ele.
Nós levámos duas garrafas de vinho, uma garrafa de whisky e sobremesas.
Os patos do alferes Santos estavam com muito bom aspecto e óptimo paladar. Comeu-se toda a noite, bebeu-se, dançou-se. Eu sou um fraco dançarino, mas o salão de festas estava super lotado. Os pares mal se podiam mexer o que me favoreceu muito. Por outro lado o engenheiro Lourenço Pinto, enlaçado à sua mulher, sempre que passava por mim incentivava-me.
Foi uma linda festa, embora não me recorde de, alguma vez, me ter acontecido uma passagem de ano em que tivesse de contribuir com produção alimentar própria.
Alguns dias depois agradeci ao alferes Santos a sua colaboração e pretendi reembolsá-lo das despesas. Explicou-me, nessa altura, que por erro da sua escrita na relação das existências na agro-pecuária do batalhão de engenharia tinha dois patos a menos do que aqueles que na verdade existiam na capoeira.
- Com a morte daqueles dois patos foi a maneira de acertar as minhas contas.
Era um bom amigo o alferes Santos. Sendo natural do Cartaxo, no Ribatejo, dançava muito bem o fandango.

Nota: Esta história faz parte do livro "Memórias da Guiné" do mesmo autor, de onde foi transcrita.

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