quinta-feira, 14 de julho de 2016

Cantiga da rua

A história que vos vou contar passou-se numa terra muito pequena, numa aldeia perdida na Beira Interior que se chama S. Pedro do Rio Seco.
Outrora havia por lá um riacho que hoje já não existe. Secou.
S. Pedro do Rio Seco é uma terra de pastores e agricultores.
Entre os rapazinhos que eu conheci, quando por lá passei, havia dois que são os principais protagonistas desta história: o Carlinhos, filho de um lavrador abastado e o Zé Pequeno, filho de um ferreiro.
O Zé Pequeno era um rapazinho triste e enfezado que andava sempre agarrado a umas muletas, porque não tinha força nas pernas.
O Carlinhos, esse era muito saudável de rosto sempre afogueado, de tronco encorpado e nádegas avolumadas. Tinha uma cara gaiata que em certas ocasiões me fazia estalar o riso.
Muitas vezes brincávamos no meu quintal onde havia uma coelheira com muitos coelhos e também uma cabrinha que, servia em certas ocasiões, de cavalo de guerra.
Outras vezes brincávamos em casa do Carlinhos que era grande e recheada de tudo. Quase sempre, quando lá íamos, éramos convidados para comer uma lauta merenda onde entre outras coisas entravam figos, nozes, pão com marmelada...
Em outras ocasiões juntávamo-nos na casa do Zé Pequeno onde com curiosidade, seguíamos os trabalhos em ferro que o seu pai executava.
Nós esforcávamo-nos sempre por alegrar o Zé Pequeno na frente do seu pai, que era um homem que trabalhava horas a fio à bigorna e a malhar e cortar ferro até ficar exausto de cansaço.
Falava pouco o Tio Zé Ferreiro e nunca o vi sorrir. Mas também nunca ninguém o ouviu lamentar-se da sua triste sorte.
Certo dia, próximo do Natal, ele nos confidenciou que o seu pensamento, a sua ambição era juntar o dinheiro necessário para que o seu filho entrevado pudesse libertar-se das muletas fazendo uma operação à coluna vertebral.
Pelas contas dele ainda faltavam dois anos de duro trabalho para atingir a quantia em dinheiro necessária para poder pagar as despesas da operação do Zé. Mas havia de o conseguir e então o seu filho deitaria corpo, far-se-ia forte e poderia ajudá-lo na ferraria.
Eu fui para casa a pensar nas palavras do Tio Zé Ferreiro e contei o que ouvira dele aos meus pais. Eles logo me deram uma nota de mil escudos (cinco euros) para ajudar nas despesas da operação.
Quis correr para casa do Zé naquela noite para lhe entregar os mil escudos, mas os meus pais não mo consentiram e, por isso, tive de me deitar.
No dia seguinte, de manhã cedo, fui acordado por uma barulheira enorme. Era um acordeão que se ouvia. Lembrei-me logo do Carlinhos que tinha um acordeão e da sua música preferida: A Cantiga da Rua.
Lá estava a Cantiga da rua. Comecei a perceber e a distinguir a música, só não entendia por que seria que o Carlinhos andava tão de manhãzinha acordando com a sua cantiga toda a gente daquela pacata aldeia, meio perdida na Beira Interior.
- Eh Carlos ! Porquê tão cedo ?!
O Carlinhos vinha mais afogueado do que o costume e os seus olhinhos espertos brilhavam muito.
Ele disse-me qualquer coisa à toa. Falou em Zé Pequeno... operação... dinheiro.
Também não precisava de dizer mais nada porque eu percebi logo tudo e atirei-lhe com a minha nota de mil escudos.
O Carlinhos continuou a sua marcha, tocando no acordeão a sua música preferida:
Cantiga da rua
De todas diferente
Não é minha, não é tua
É de toda a gente.
E foi percorrendo todas as ruas de S. Pedro do Rio Seco e parando em todas as casas.
Andava penosamente porque o acordeão era enorme tendo em vista a sua pequena estatura. Parecia uma pintura de um autor célebre, com o seu cabelo negro em desalinho, a sua face afogueada e o olhar esperto.
A todos que encontrava dizia sempre à toa algumas palavras das quais sobressaiam: Zé Pequeno... operação... dinheiro.
E tocando o seu acordeão aquele rapaz que eu conheci, quando passei por S. Pedro do Rio Seco, conseguiu juntar o dinheiro suficiente para poupar ao Tio Zé Ferreiro muitos dias de trabalho insano e de lhe trazer ao rosto um breve sorriso contido naquele distante Natal.

Nota: Esta história aconteceu na vida real, mas num contexto diferente daquele que descrevi e com outra canção e outros intervenientes.

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