sábado, 30 de abril de 2016

Numa noite fria

Numa noite fria apeteceu-me passear. Caminhei por ruas de que não me lembro e fui surpreendido numa viela escura e sozinha por música de dança.
Era um turbilhão avassalador o ruído dos tambores, dos pratos e dos cornetins.
Deixei-me arrastar até ao local de onde vinha esse ruído avassalador.
Uma rapariga do povo, surgindo do escuro, informou-me que se tratava de um ensaio.
- Aos domingos é que eles tocam a valer. Há baile todos os domingos.
- No próximo domingo hei de vir.
- Ah ! Ah ! Ah ! - fez ela numa gargalhada doida e os seus olhos faiscavam de malícia. Isto não é para si.
Fez-me um sinal com o indicador duma das suas mão e reparei, então, num pequenito empoleirado numa janela seguindo a música.
A seguir o silêncio reinou entre nós, a rapariga fremente de prazer, o rapaz regorgitante de alegria e eu atordoado de desejo, de música e de vergonha.
Depois deixei de ouvir a música, de sentir a rapariga e de notar o rapaz.
Caminhei pela viela mal calcetada, em direcção a casa. Caminhei, cheio de vergonha, tropeçando aqui e ali.
Não ia longe porém, quando percebi que o rapazito me chamava:
- Senhor ! Meu senhor !
- Que me queres tu, rapazito ?
- A minha irmã mandou-me chamar por si. Meu senhor dê-me um escudo.
- Canalha ! Sai-me da vista ou dou-te um par de açoites ! Foge ! Judas !
Ele correu com quanta força tinha. Só bem longe é que parou para me dizer:
- É doido ! ...
E eu, com os cabelos molhados da chuva, e uma grande confusão no espírito, regressei a casa naquela noite fria.



Loucuras de rapaz

Dos companheiros com quem convivi na minha juventude na cidade do Porto houve um que me foi muito próximo: o meu primo Fernando José.
Convivi com ele, porém, em permanente sobressalto pois o Fernando José só se sentia bem quando, libertando alguma da sua adrenalina, cometia verdadeiras loucuras.
Na companhia dele, por exemplo, não era necessário esperar uma eternidade numa fila para se obterem os bilhetes para uma sessão de cinema ou para assistir a qualquer outro espectáculo.
Aproximava-se da pessoa que estava para ser atendida, tocava-lhe no ombro e com toda a correcção pedia-lhe licença para dar duas palavrinhas ao senhor (ou senhora) da bilheteira.
Apanhando todos de surpresa não me lembro de alguma vez ter sido recriminado ou de alguém lhe ter negado o que lhe solicitava.
Depois era só pedir os bilhetes e pagá-los.
Era atrevido por natureza mas tinha um conhecimento inato da psicologia e do comportamento humano. Em regra a sua análise era certeira, mas havia por vezes situações que se não desenrolavam como esperava. Estou a lembrar-me de, numa certa noite, me ter confidenciado que sabia, por lho terem dito, da existência de uma "casa de meninas" muito novas verdadeiros sucos da barbatana.
Sabia que a referida "casa" se situava numa determinada rua do Porto, mas não tinha fixado o número da porta. Mas isso para ele não era importante. Bastava deslocarmo-nos até essa rua que havíamos de descobri-la. E fomos os dois até lá. Verificamos, depois de percorrer a rua em causa, que num determinado prédio a porta de entrada estava entreaberta. Resolvemos aguardar os acontecimentos, por perto. A dada altura entrou um homem pela referida porta. Mais adiante entraram mais dois.
Para o Fernando José não havia nenhuma dúvida. Estava ali o que procurava-mos.
Eu ainda pus algumas objecções. Mas ele encaminhando-se para a porta entreaberta entrou decidido. E eu entrei também.
A primeira impressão que tive foi a de que a "casa" estava à média luz. Mas, depois de percorrermos um corredor e desembocar-mos numa sala, deparamos com ... um caixão com gente ao seu redor velando ... um morto!
Aguentamos alguns minutos participando no velório, depois sorrateiramente saímos e rimos como uns doidos quando nos encontramos cá fora na rua.
O Fernando José, em geral, não se controlava. O que tinha vontade de fazer fazia. Se deparava com alguém cujo aspecto ou comportamento o irritava, não estava com meias medidas, procurava uma oportunidade para lhe enfiar um cachaço, por vezes bem forte, no pescoço. O homem ficava estupefacto mas a justificação vinha imediatamente:
- Oh ! desculpe! As minhas desculpas. O senhor é muito parecido com um amigo meu. Visto de traz pareceu-me mesmo ele. Peço-lhe imensa desculpa.
Esta situação correu sempre bem, mesmo quando o cachaço era de tal maneira forte que os bonés daqueles que os usavam iam parar bem longe.
Quando regressava-mos a casa, a pé, vindos da baixa do Porto, subia-mos a rua dos Clérigos e passava-mos pela Praça dos Leões. Havia aí uma pensão que funcionava no primeiro e segundo andares. O acesso à pensão era efectuado por uma porta, ao nível do rés-do-chão, que estava sempre aberta. Depois da porta havia um corredor, com vários vasos de plantas, que nos conduzia às escadas que subiam para os andares. Muitas vezes o Fernando José fazia aí uma paragem e dizia-me:
- Aguenta aí que eu vou regar as plantas. E, embora lhe lembrasse que tinha bem perto o café Piolho onde poderia satisfazer as suas necessidades fisiológicas, mesmo assim não desistia de ir regar as plantas.
Numa discussão na Brasileira, já ia alta a noite, com um jornalista, por um motivo de que já nem me recordo, acabaram por se tratar mal mutuamente. O Fernando José a dada altura saiu do café, procurou um polícia e ordenou-lhe com grande autoridade que obrigasse o jornalista a dirigir-se à esquadra mais próxima pois havia sido insultado e ameaçado pelo que pretendia queixar-se dele.
E, para meu espanto o polícia obedeceu-lhe e encaminhou-os para a esquadra junto ao Governo Civil na Batalha. Aí foram ouvidos os dois acabando o jornalista por pedir desculpa ao meu primo se quis resolver a contenda e sair da esquadra.
Mas a maior loucura que o Fernando protagonizou na minha presença foi com certeza "a história rocambolesca do roubo de um automóvel na Feira Popular" título da notícia que o jornal O Primeiro de Janeiro deu ao acontecimento que adiante vou relatar.
Naquele tempo (1958) realizava-se nos jardins do Palácio de Cristal a Feira Popular do Porto entre o mês de Junho e o fim do mês de Agosto.
Nesses tempos (anos cinquenta e sessenta) também ocorria durante o Verão o circuito automóvel da fórmula um da Boavista, igualmente na cidade do Porto. Nesse circuito realizado em 1958, uns dias antes dos acontecimentos que vou relatar, competiam por vezes entre outros o piloto português Casimiro de Oliveira (irmão do cineasta centenário Manuel de Oliveira) e os mundialmente célebres Stirling Moss e Juan Manuel Fângio.
A referida Feira Popular realizava-se na zona envolvente do Palácio dos Desportos, hoje Pavilhão Rosa Mota.
Havia, como acontece nas feiras populares toda a espécie de divertimentos. Nas margens da Avenida das Tílias, avenida central dos jardins, formaram-se esplanadas e promoviam-se produtos e artefactos, havendo pelo menos um stand de automóveis expondo os mais recentes modelos de reconhecida marca. Nessa noite, na primeira fila do stand, de frente para a referida Avenida das Tílias, encontrava-se exposto um automóvel descapotável de cor vermelha reluzente que atraía as atenções de quem passava.
O Fernando José, rodeando o carro, ficou verdadeiramente entusiasmado com o veículo. Solta mesmo diversas exclamações de admiração mostrando grande interesse pelo automóvel. Atitude que, evidentemente, é notada pelo responsável do stand que o aborda e se põe à sua disposição para lhe fornecer qualquer informação sobre o carro. Depois de uma troca de palavras entre os dois acerca das "perfomances" e características do bólide o Fernando José pede autorização para se sentar no lugar do condutor do descapotável. Confortavelmente instalado convida-me para me sentar ao seu lado o que não aconteceu, dado  que preferi ficar de fora.
Sentado ao volante do automóvel reinicia a conversa  com o responsável do stand e, a dada altura, solicita-lhe mesmo a chave de  ignição para ouvir o motor do carro a trabalhar.
Amavelmente o homem acedeu ao seu pedido e ele imediatamente resolve ligar o motor do carro .
Continua, apesar do barulho do motor, a dialogar com o representante do stand que, porém, tem de interromper a conversação para atender alguém que o reclama.
Mal o homem vira costas o Fernando José engrena a primeira velocidade, acelera o motor e projecta o carro para a Avenida das Tílias que, nessa noite, se encontrava pejada de gente.
Vira para a direita e movimenta o automóvel pela referida avenida na direcção da saída do Palácio de Cristal, obrigando as pessoas a abrir alas para que o descapotável pudesse seguir em frente.
Fiquei verdadeiramente preocupado com o que estava a acontecer e corri quanto pude para tentar impedir que ele prosseguisse a marcha. Mas a minha tentativa foi em vão.
Foi-me ganhando progressivamente a dianteira, afastando-se cada vez mais e quando cheguei ao portão do Palácio só avistei ao longe as luzes do carro na rua Júlio Dinis, luzes que se tornaram cada vez mais fracas à medida que rolava na direcção da Rotunda da Boavista. Tomei por isso a decisão de apanhar um táxi e de me dirigir a casa de um outro nosso primo, mais velho, já casado que morava próximo do cemitério de Agramonte junto à Rotunda já referida.
Nessa altura já era cerca da meia noite. O Carlos, assim se chamava esse outro nosso primo, já estava deitado quando insistentemente toquei à campainha da sua casa. Veio à porta em pijama, meio ensonado. Rapidamente o informei do que estava a acontecer com o Fernando José. Vestiu-se apressadamente e perguntou-me onde, na minha opinião, o poderíamos encontrar. Conhecendo-o bem respondi-lhe prontamente:
- No Circuito da Boavista.
Retirou o seu carro da garagem e partimos os dois para o referido circuito. Quando nos encontrávamos próximo do Castelo do Queijo passou por nós o Fernando José, cabelos ao vento, no seu descapotável a uma velocidade apreciável. Tentamos persegui-lo mas depressa o perdemos de vista.
Por isso resolvemos parar junto ao Pinheiro Manso e aguardar os acontecimentos.
Aí por duas vezes vimos o Fernando José passar a grande velocidade. Ficámos preocupados pela sua terceira passagem estar demorada, mas depressa verificamos que o descapotável descia a Avenida da Boavista muito devagar acabando por parar perto de nós... sem gasolina. Mal saiu do carro logo me invectivou:
- Dispenso as tuas lições de moral, ouviste?
 O Carlos com muita calma apoderou-se das chaves do carro, arrumou-o melhor que pode e trancou as portas.
Depois entrámos no seu automóvel e seguimos na direcção do Palácio de Cristal deixando o Fernando José na Rotunda da Boavista.
No Palácio entramos em contacto com o responsável do stand de onde havia sido levado o descapotável vermelho, informando-o do local onde se encontrava e de que, aparentemente, não tinha sofrido qualquer estrago.
Entregamos-lhe as chaves do automóvel e o Carlos responsabilizou-se por qualquer prejuízo que pudesse vir a verificar-se no veículo.
Foi quando o homem nos informou que tinha apresentado queixa no posto da polícia existente no recinto da feira contra o Fernando José que havia conseguido identificar.
Pedimos-lhe por isso, que retirasse a queixa ao que ele acedeu, pelo que nos dirigimos os três ao referido posto policial para o efeito.
Mas não foi possível retirar a queixa por o veículo ter sido conduzido sem matrícula o que, nestas condições, não lhe era permitido circular em vias públicas.
- O Fernando José, mais tarde, contou-me que devido a uma infracção que cometeu, um polícia mandou-o parar o que não fez. O polícia, em resultado disso, accionou um apito estridente, puxou de uma caneta e de um bloco de notas mas ficou suspenso pois não pode fazer a anotação que pretendia por o carro não possuir qualquer matrícula -
Depois do insucesso verificado no posto da polícia o Carlos e eu próprio resolvemos regressar a casa que a noite já ia alta.
Na manhã do dia seguinte, dormindo ainda um sono profundo, recuperando dos trabalhos porque havia passado na noite anterior, sou acordado pela minha mãe que me anunciava a presença em nossa casa do Fernando José. Disse-lhe para o mandar entrar para o meu quarto. Mal entrou fez-me de chofre a seguinte pergunta:
- Ouve lá, tu sabes quem era Rocambole ? Aqui no jornal comparam-me ao Rocambole. Quem era esse gajo, pá ?
Naquela ocasião não pude dar-lhe a informação correcta sobre o que me perguntou. Se fosse hoje dir-lhe-ia que o Rocambole nunca existiu. Foi um produto da imaginação de um escritor francês, Ponson du Terrail que celebrizou essa personagem devido à sua fecunda imaginação, envolvendo-o em aventuras de intenso dramatismo nos seus livros, tais como:
- As aventuras de Rocambole,
- A verdade sobre o Rocambole,
- Rocambole na prisão,
- O regresso de Rocambole e muitos outros.
Tudo imaginário, nada de real, o que era bem diferente do que aconteceu com ele, Fernando José, naquela noite de Agosto de 1958 no Palácio de Cristal.





sexta-feira, 29 de abril de 2016

Histórias da vida real

Tendo chegado ao fim a minha página no blogspot "Portugal e o Passado" resolvi iniciar outra nova página 
intitulada "Histórias da vida real".
Trata-se do relato de diversos acontecimentos da vida real que presenciei, de que fui mesmo protagonista
ou de que tive simplesmente, conhecimento.
Histórias que não são mais do que verdadeiras pequenas comédias humanas.
Quem continuará a editar o futuro blog será o meu neto Manuel Gonçalo Gomes de Almeida Pinho Valente,
como aconteceu com o "Portugal e o Passado", tarefa esta que muito apreciei.