sexta-feira, 15 de julho de 2016

A noite de S. Martinho

No dia de S. Martinho de 1958 estava eu em Vendas Novas aquartelado na Escola Prática de Artilharia.
A minha camarata era constituída por oito beliches, quatro de cada lado com as cabeceiras encostadas às paredes laterais. Entre os beliches havia um espaço (corredor) que ia da porta de entrada até à única janela existente na parede posterior.
O meu beliche era ocupado por mim na parte inferior e na parte superior dormia uma camarada meu que, embora da minha idade, isto é com vinte e dois anos já tinha uma grande falta de cabelo.
Por brincadeira antes de adormecermos fazia-lhe uma festa na careca, atitude que o enervava mas que eu repetia sempre.
A instrução militar era muito cansativa. Passávamos o dia a mudar de fardamento, ora para a ginástica, ora para a luta corpo a corpo ora para os "crosses" pela planície alentejana, ora para a ordem unida... Era um corrupio. Entre os intervalos das diversas instruções mal tínhamos tempo para despir o fardamento e vestir o que se imponha na hora seguinte.
Também o esforço físico era permanente o que me trazia exausto.
Na noite do dia de S. Martinho de 1958 eu, que nunca tive grande apreço pelas bebidas alcoólicas, resolvi descansar pelo que não solicitei licença de recolher. Dos dezasseis cadetes da minha camarata fui o único que não pedi essa licença.
Deitei-me cedo, num enorme silêncio, enquanto todos os outros resolveram ir beber uns copos nessa noite.
Cerca da meia-noite desse dia, quando regressaram fizeram algum barulho mas eu dormindo profundamente não dei por nada.
Animados, como vinham, resolveram pintar-me um grande bigode e um pêra com a tinta de engraixar as botas. Com mercúrio-cromo também me pintaram de vermelho a ponta do nariz e as maçãs do rosto sem ter dado sinal de vida.
Continuei a dormir pesadamente. Disseram-me, no dia seguinte, que a única reacção que tive foi a de fungar pelo nariz com algum ruído devido possivelmente ao cheiro da tinta e do mercúrio-cromo.
Quando tocou a alvorada levantei-me lesto como sempre pois o tempo para a formatura do pequeno almoço não demoraria muito e antes teria de tomar um chuveiro diário de água gelada, de me barbear, pentear e escovar os dentes e, claro, de me fardar convenientemente.
Só quando cheguei ao balneário, olhando-me no espelho é que tomei consciência da figura em que estava. Fartei-me do vocifrar para gáudio dos meus colegas. E tratei de limpar as pinturas que me haviam feito como pude.
Os meus colegas esses riam com o meu enervamento e desespero na tentativa de remover as pinturas de que tinha sido objecto.

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