Depois de ter terminado o curso de oficial miliciano na Escola Prática de Vendas Novas fui colocado no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves sediado em Paramos-Espinho.
Esta unidade militar tinha por função, juntamente com uma Bateria instalada em Leixões, defender a cidade do Porto de um possível ataque aéreo.
O referido Grupo de Artilharia situava-se próximo do Aéreo Clube da Costa Verde mesmo junto ao mar e à Barrinha de Esmoriz. O quartel era desabrigado embora ao seu redor se perfilassem numerosos pinheiros e eucaliptos de elevado porte. Nas noites chuvosas e ventosas de inverno com as fortes bátegas de água e as violentas rajadas de ventos criava-se no quartel um ambiente apocalíptico para que contribuía também o ranger constante dos ramos das árvores.
Depois de publicada a Ordem de Serviço diária os militares que não tinham quaisquer funções a cumprir podiam abandonar o quartel ficando no mesmo somente aqueles que estavam designados para o cumprimento de qualquer missão como os sentinelas e os oficiais, sargentos e cabos de dia.
No cumprimento do cargo de oficial de prevenção, como aspirante a oficial miliciano, assessorei muitas vezes o oficial de serviço que cabia em regra a um tenente ou capitão. Esse oficial de serviço era o primeiro responsável por tudo quanto acontecesse na unidade militar até ao dia seguinte e o oficial de prevenção o seu imediato.
Das tarefas que ambos faziam durante a noite uma delas era passar em revista periodicamente as sentinelas espalhadas por diversos pontos dos muros envolventes do quartel, vigiando para que não houvesse qualquer tentativa estranha de intrusão. Essa revista também era feita por sargentos e cabos intervaladamente sendo obrigados os mesmo a dar conhecimento ao oficial de serviço, no final da tarefa, do resultado das suas diligências.
Com alguns capitães e tenentes, quando escalados para oficias de dia, havia a concordância de se dividir a noite com o oficial de prevenção (aspirante a oficial ou alferes) de modo a permitir que cada um deles descansasse pelo menos três horas, rendendo-se ao fim desse período de tempo.
Com o capitão Ferreira isso porém não acontecia. Quando se era designado para o assessorar a noite era completamente perdida.
No inverno, junto ao mar, as noites são assustadoras com o vento a sibilar, as árvores constantemente a baloiçar, os seus ramos a ranger e as chuvadas intermináveis a desabar sobre o terreno.
Foi numa noite dessas que me aconteceu uma vez ser oficial de prevenção do capitão Ferreira. A nossa "base" era a sala de estar da messe de oficiais. Aí recebíamos os sargentos e cabos de serviço que nos vinham periodicamente dar conhecimento dos resultados das suas revistas e daí partíamos também para a nossa própria ronda aos sentinelas, e aí regressávamos quando terminada.
Fora esses períodos conversávamos sobre os mais diversos assuntos. Nessa noite, depois de esgotados todos os assuntos, resolvi fazer uma abordagem no sentido de ver se demovia o capitão Ferreira da sua intransigente posição. Falei-lhe que os seus colegas, em geral, dividiam a noite desde as vinte e quatro horas até às seis horas do dia seguinte no sentido de permitir que cada um dos oficiais descansasse pelo menos três horas. Ele, que era muito rigoroso no cumprimento do R.D.M. (Regulamento de Disciplina Militar) disse-me logo que não tinha nada a ver com o que os outros faziam. Com ele o que estava regulamentado era para cumprir integralmente e nessa matéria não transigiria. Ele respeitava os regulamentos e a sua vida militar pautava-se por cumprir e fazer cumprir o R.D.M.
Depois de o ouvir insinuei que isso não era bem assim. O que fui dizer. O capitão empertigou-se e, sentindo-se injustiçado, quis logo saber o que é que eu estava insinuando.
Depois de muito instado acabei por lhe dizer que sendo oficial de artilharia e estando regulamentado no R.D.M. (que foi mandado elaborar pelo Conde de Lippe quando foi incumbido da reforma do Exército Português no tempo de D. José I, em 1762, e ainda vigorava) que sendo ele oficial de artilharia e estando regulamentado que os oficiais dessa arma deviam usar pêra e bigode, ele que não usava uma coisa nem outra, se encontrava em incumprimento.
Soltou uma gargalhada. E acabou por considerar que nesse aspecto eu tinha razão.
Mas mesmo assim não permitiu que eu fosse descansar para o meu quarto algumas horas.
Muito bem apanhado!
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