terça-feira, 3 de maio de 2016

O Santo Apolinário

Em Urros, aldeia serrana do concelho de Torre de Moncorvo, houve em 1966 uma perturbação da ordem pública porque alguns ânimos exaltados denunciaram que a imagem de Santo Apolinário, existente na capela do referido santo, teria sido trocada por outra de muito menos valor.
Foi posta em causa, com essa atitude popular, a Comissão de Festas do Santo Apolinário de Urros que acusaram de ter vendido a antiga imagem do santo, considerada valiosa, substituindo-a por outra sem valor, quando foi mandada restaurar a primeira.
Para muitos a imagem, depois de restaurada, não tinha a expressão a que as gentes da aldeia se haviam habituado e o olhar do santo era diferente. A cadeira onde se sentava não era a mesma e a mitra que usava também não, além do cordão da cruz ser mais cumprido. Mas o que mais desagradava ao povo era a fisionomia do santo que era outra.
Desta contestação surgiu a suspeita de que o Presidente da Comissão de Festas professor Jozino Amado teria vendido a verdadeira imagem e a fizera substituir por uma semelhante, mas sem qualquer valor.
E esse assunto tornou-se na conversa habitual naquele fim de verão de 1966 dos habitantes de Urros, uma aldeia muito antiga que recebeu foral de D. Afonso Henriques e que noutros tempos chegou a ser mesmo sede de concelho.
A sua população tem sido muito devota do Santo Apolinário desde tempos imemoriais.
Com este nome há dois santos: um foi bispo de Hierápoles na Frígia e outro que foi bispo de Ravena, na Itália.
Desconheço qual dos dois está representado na Capela de Urros, capela que dispõe de um retábulo-mor, retábulos laterais e tecto artisticamente notáveis no parecer de peritos entendidos na matéria.
A modificação da fisionomia da imagem do santo era o que mais entristecia o povo. No princípio algumas (poucas) pessoas timidamente murmuravam que aquele santo não era o deles. Depois essa desconfiança ganhou uma adesão cada vez maior. E foi de tal maneira grande que muitos se revoltaram com a situação originada pelas suspeitas, bradando que era uma vergonha o que estava a acontecer, que todos haviam sido enganados pelo professor Amado. O professor foi insultado e pela calada da noite até lhe apedrejaram a porta da casa.
O professor tinha, ao longo de uma carreira de algumas dezenas de anos, ensinado as primeiras letras a várias gerações de crianças de Urros. Tinha sempre sido muito considerado pelos seus antigos alunos e restantes concidadãos como um homem justo e honesto.
Mas depois da restauração do santo tudo se alterou. Agora, de noite, alguns passando pela sua rua, pouco iluminada insultavam-no em altos berros:
- Ladrão que nos enganaste a todos. Vendeste a imagem do santo, gatuno !
Perante tal situação a Comissão de Festas do Santo Apolinário de Urros, intentou um processo judicial contra várias pessoas, acusando-as de haverem lançado criminosa e falsa denuncia de venda, pela mesma comissão, da imagem do santo na altura em que fora a restaurar.
Em vias disso o juiz do círculo judicial de Bragança mandou fazer um exame à imagem do Santo Apolinário existente na Capela de Urros por dois peritos de Arte Sacra.
Os mesmo peritos elaboraram um relatório onde consta que sobre a identidade da escultura não podem ser formuladas quaisquer dúvidas. Embora na restauração da imagem tivessem sido introduzidas algumas modificações, o referido exame demonstrou que não houve qualquer troca de imagens sendo por isso a originária aquela que, depois de restaurada se encontra na capela do santo.
Os referidos peritos qualificados afirmam ainda no seu relatório que a imagem revela moleza de formas, no tratamento das feições, mãos, panejamentos e outros pormenores, não tendo (a imagem) grande interesse plástico.
"É uma obra de imaginária de pouco valor que não dignifica o conjunto, verdadeiramente notável, constituído pelo retábulo-mor, retábulos laterais e tecto da capela a que a imagem pertence" refere-se no mesmo relatório.
Depois disto os ânimos exaltados de muitos habitantes de Urros foram acalmando ao longo do tempo. A serenidade e a paz acabaram por regressar a Urros. Mas em algumas pessoas mais idosas ainda permanecem no fundo algumas dúvidas quando o santo as olha de uma maneira diferente daquela a que sempre se habituaram. E em voz baixa continuam a murmurar:
- Hum, este não é o nosso Santo Apolinário...




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