terça-feira, 3 de maio de 2016

Por montes e vales montado num burro

Após ter terminado o meu curso de engenharia civil procurei emprego. Passados poucos meses consegui ser integrado num grupo de trabalho que tinha por missão desenvolver um plano governamental tendo em vista dotar com abastecimento de água potável as povoações com mais de cem habitantes do nordeste transmontano.
Depois de estagiar nos Serviços de Salubridade, em Lisboa, e nos Serviços de Hidrologia no Porto fui colocado em Bragança com a missão de definir uma origem para o futuro abastecimento de água potável a diversas aldeias do referido distrito.
Isto aconteceu nos anos de 1957 e 1958, há portanto mais de meio século, quando eu tinha vinte e um-vinte e dois anos de idade. Nessa época havia um atraso muito grande nas zonas rurais sobre muitos aspectos nos quais se incluíam os deficientes abastecimentos de água às populações que eram em muitos casos levados a efeito através de fontes de chafurdo e à não existência de saneamento básico e de vias de comunicação rodoviárias.
Esse atraso era particularmente acentuado no interior do país, principalmente na região de Bragança.
Nessa minha actividade visitei mais de seiscentas povoações servindo-me em muitos casos de caminhos impraticáveis à locomoção automóvel.
Nas minhas deslocações utilizei muitas vezes o cavalo, o burro e em alguns casos as minhas próprias pernas. Fiz por isso longas caminhadas pelo planalto transmontano e muitas viagens montado em cavalos ou burros.
Tendo vivido a minha juventude na cidade do Porto nunca tinha montado um cavalo ou um burro até aos meus vinte e um anos de idade. Quando o fiz pela primeira vez em Mogadouro não me senti nada seguro em cima de um cavalo, pois encontrei-me demasiado acima do solo prevendo que, a verificar-se a minha queda daquela altura, não ficaria fisicamente bem tratado. Essa insegurança não me acontecia com os burros. Sendo mais baixos que os cavalos, quando os montava quase que chegava com os pés ao chão, pelo que me sentia muito mais à vontade em cima deles.
Por isso, em muitas das minhas deslocações, optava por ser transportado por burros quando era impraticável o acesso automóvel.
Era sempre acompanhado nessas minhas jornadas por um fiscal da câmara municipal da área que, montado noutro burro, levava consigo várias medidas (meio litro, um litro, dois litros...) medidas que eram utilizadas para calcular os caudais das nascentes inspeccionadas. Enquanto o fiscal assegurava que a água corresse em bica directamente para uma das medidas eu, com a ajuda de um cronómetro, registava o tempo que demorava a enchê-la.
Desse valor fazia a respectiva anotação, registava nas cartas topográficas a localização das nascentes e calculava o caudal que as mesmas garantiriam no seu estado natural em vinte e quatro horas.
Dessa vida, ao ar livre, percorrendo  montes e vales, tenho gratas recordações. Era sempre muito bem recebido pelas populações que me mimoseavam com o que melhor possuíam nas suas dispensas.
Mas há uma dessas viagens que, quando a recordo, sempre o meu rosto se abre num largo sorriso.
Certa vez, depois de vestir a minha indumentária própria para essas andanças, composta por botas cardadas, calças de cotim, camiseta e chapéu de aba larga, montei no meu jerico em Alfândega da Fé para me deslocar a Vale Pereiro. Acompanhava-me o senhor António, fiscal da Câmara de Alfândega da Fé, igualmente montado num burro no qual transportava as diversas vasilhas necessárias para medir os caudais das nascentes. Depois de alguns quilómetros percorridos passámos por um pequeno aglomerado que não fazia parte do nosso programa por ter muito pouca população.
Quando o acabava-mos de atravessar fomos interpelados por um homem que em altos berros chamava por nós.
- Eh ! Venham cá ! Venham cá !
Tivemos que providenciar para que os burros interrompessem o seu andamento e como não percebíamos o que o homem queria o fiscal António, obrigando o seu burro a inverter a marcha, foi ao seu encontro para procurar saber o que é que ele pretendia.
Passados breves momentos o meu companheiro de jornada troteou até mim com um larga sorriso no rosto informando-me que o indivíduo que nos chamava queria que lhe consertássemos (deitássemos uns pingos de solda) numas suas panelas que tinha rotas pois julgava que nós éramos caldeireiros.



Sem comentários:

Enviar um comentário